Desfazendo do título

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Na esperança de recobrar a memória, de manhã, Sara decidiu vistoriar o local em que moraria, afinal, pelo menos quatro anos de sua vida foram passadas naquele local.

Começou pelo quarto que ocupava. Espaçoso, com móveis em tons de cinza e marrom, tinha uma cama, que ocupava quase todo o cômodo, de cada lado uma mesa de cabeceira com abajur e na frente um raque baixo com uma televisão enorme. Era bonito, mas estava longe de ser aconchegante, não havia fotos, faltavam cores e personalidade, tudo parecia frio, impessoal e extremamente masculino.

Observou que o quarto tinha três portas, lembrava-se da que havia utilizado para entrar no quarto, foi em direção à segunda, abriu e se deparou com um banheiro enorme. Novamente, tudo em tons escuros. Ficou fascinada ao perceber que havia uma banheira - sempre sonhara em ter uma -, mas em seus sonhos sempre era na cor branca e não preta.

Curiosa, encaminhou-se para a terceira porta, maravilhando-se ao perceber que se tratava de um closet cheio de divisórias. De um lado roupas, sapatos e acessórios masculinos e do outro lado itens femininos. Aproximou-se da sua parte. Vasculhou as gavetas, desdobrou algumas peças, e se deu conta que as roupas, os sapatos e os acessórios eram lindos, mas não lhe agradavam, não pareciam ser dela. Aparentemente, se tornou uma mulher de roupas sisudas e sem graça.

Saiu do quarto e andou pela casa acumulando impressões negativas a respeito da atmosfera sombria, deprimente e sem nenhum toque feminino. Era difícil se imaginar morando naquele local. Sempre sonhou em ter uma casa colorida, com fotos e algumas flores. Um lar precisava de pelo menos uma dessas coisas para ser aconchegante e atraente.

Com certeza mudou muito nos últimos dez anos, pois não gostava das roupas, da decoração e nem de seu marido...

"Dele você gosta sim. Ele é tão lindo".

— Só porque ele é lindo, não quer dizer nada — falou alto para calar seus pensamentos inconvenientes. — Droga! Além de desmemoriada, falo sozinha.

Foi em direção à porta de mais um cômodo, tendo de recuar surpreendida quando ela se abriu. Uma mulher de olhos escuros, cabelo castanho preso em um coque, de mais ou menos a sua idade, usando uniforme cinza saiu, nas mãos carregava um enorme cesto quadrado. Ela a encarou assustada e, com um gritinho, largou o grande cesto, espalhando todo o conteúdo pelo chão: Várias peças de roupas, que antes estavam dobradas.

— Senhora Montenegro, desculpe-me... Pensei que ainda estava no hospital... Desculpe-me... Vou passar tudo novamente...

A mulher se abaixou, recolhendo as peças com pressa e jogando dentro do cesto. Com pena, Sara se abaixou para ajudar, recolhendo algumas peças. De repente a outra ficou imóvel e a encarou surpresa.

— Senhora Montenegro, não precisa...

Sara a encarou e sorriu.

— Pode me chamar de Sara. — Vendo que a jovem parecia chocada com seu pedido, esclareceu com humor: — Não me recordou de alguns fatos, um deles é o de ser a senhora Montenegro.

A mulher assentiu em silêncio e voltou a guardar as peças com a ajuda de Sara. Ao fim da tarefa, levantou e segurou o cesto com força contra si e, de cabeça abaixada, retornou ao cômodo. Seguindo a moça, Sara não pode deixar de notar que ela tremia.

— Nossa! — murmurou fascinada ao descobrir a lavanderia com diversos equipamentos cromados.

A exclamação de Sara fez a empregada a olhar impressionada. Era evidente que o acidente mudou a senhora Montenegro. Desde sua contratação jamais viu a elegante patroa entrar na lavanderia. Colocou o cesto ao lado da tábua de passar, pronta para engoma-las novamente, e tentou ignorar a presença de Sara.

— Qual seu nome?

— Marta, senhora Mon... — Calou quando Sara a encarou com uma sobrancelha levantada. — Me desculpe, senhora Sara.

— Não se desculpe. Só não me chame de senhora, me faz me sentir uma velha. — Fez uma careta e começou a rir.

A jovem sorriu por um instante. Sara apreciou isso.

— Marta, ha quanto tempo trabalha aqui? E o que faz? — perguntou, esperançosa de obter informações.

— Fui contratada há dois meses. Tenho que manter tudo em ordem — Marta repetiu a ordem dada ao ser contratada.

Sara mordeu o lábio inferior. Dois meses era pouco para que Marta soubesse algo sobre seu relacionamento com o Montenegro.

— Como era o meu dia? O que eu fazia?

Marta a encarou sem ação. O que deveria fazer? E se fosse um teste? Sabia que a senhora Montenegro, Sara, perdeu algumas lembranças por causa do acidente, pelo menos foi o que ouviu na televisão e leu em algumas revistas de fofocas, porém, aquela mulher lhe dava medo e até aquele dia nunca a vira sorrir ou ser gentil. E se dissesse algo que não a agradasse e fosse demitida?

Após pensar um pouco, respondeu com sinceridade:

— Só passo algumas horas aqui, não vejo muita coisa.

— Mas o que você vê nessas horas? Por favor, me ajude a entender quem fui — Sara suplicou.

— A senhora costuma telefonar para o seu marido — confessou quase em um murmúrio.

— Telefonar?

— A senhora se preocupa com o senhor Montenegro, lhe telefona várias vezes ao dia, pra saber se tomou o café, onde está e com quem está.

Sara fez uma careta, nunca imaginou que seria do tipo que perde tempo telefonando para o marido no horário de trabalho.

— E ficava aqui o tempo todo?

— Não, a senhora saia. — Marta desviou o olhar. — Ia até à empresa do senhor Montenegro quando ele não atendia suas ligações

Certo, aquilo passou de preocupação para perseguição.

— E minhas amigas?

— Nunca vi nenhuma amiga da senhora.

Sara parou de perguntar depois disso. Não reconhecia nada em sua atual vida, essa era a verdade.

Resignada, acompanhou o dia de Marta, que, após passar todas as roupas, preparou o almoço e saiu limpando tudo o que via pela frente. Recusou todas as tentativas de Sara em ajuda-la e, contrariando seu pedido, a chamava de senhora o tempo todo, embora não acrescentasse o sobrenome Montenegro.

Aos poucos Sara conseguiu tirar algumas informações sobre a empregada. Marta contou que ajudava seus pais e pagava a faculdade de letras, estava no último ano e queria ser professora. Sara contou sobre sua perda de memória, como era complicado associar o que se lembrava com tudo que a cercava agora. Era bom ter alguém para conversar.

As horas passaram rápido e logo Marta se despediu. Sozinha, Sara olhou ao redor sem saber muito bem o que fazer.

Por fim, decidiu tomar banho, ficando um bom tempo mergulhada na banheira. Ao sair colocou o roupão e entrou no closet a procura de algo para vestir, se dando conta, novamente, que não eram o tipo de roupa que gostava. Muito sérias, pareciam mais adequadas para festas, trabalho e evento social do que para ficar em casa a toa, como estava naquele momento.

Remexeu em cada canto da sua parte, da mais baixa a mais alta, quase se decidindo por uma calça social preta e uma blusa branca, com um babado em volta do decote, quando abriu uma caixa no topo da estante e sorriu emocionada.

— Finalmente algo que reconheço.

Páginas em Branco ~ DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora