Senhor leonino

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O domingo amanheceu com o céu encoberto. Grossas gotas batendo nas janelas do apartamento, molhando a varanda, dando a Sara uma vontade de não sair da cama até que o sol voltasse a dar o sinal da graça. No entanto, seu estômago tinha outros planos.

Pegou um casaco pesado e felpudo cinza, pertencente às roupas adquiridas pela senhora Montenegro, uma calça moletom e meias para se manter aquecida. Calçou os chinelos e rumo à cozinha para saciar o ronco dolorido da barriga.

Foi pisar na sala para salivar com o delicioso aroma de café e pão fresco. Preparando-se para encontrar Rodrigo, arrumou o cabelo usando os dedos como pente. Era tarde para escovar os dentes, que nem lembrou ao levantar com a fome urrando alto, mas nem precisava. Começar do zero era uma dica para evitar beijos e semelhantes, não era?

Seu cérebro, recém-desperto do sono, bradou um sonoro "não" ao visualizar Rodrigo sentado na cozinha. Ele simplesmente era demais para Sara. Forte demais, bonito demais e excitante demais, mesmo quando só estava lá, existindo de camiseta, calça jeans e comendo pão.

Inspirou fundo, apertou as mãos no casaco e entrou fingindo tranquilidade. Não conseguia explicar o motivo, mas ele lhe causava um mar de emoções. A irritava, fascinava e excitava, tudo ao mesmo tempo, só por olha-la como o fez assim que entrou em seu campo de visão.

— Bom dia!

— Bom dia! — saudou de volta, servindo-se de café. Dessa vez, preparada para o café feito por ele, colocou açúcar e provou antes de dar um gole maior.

— Comprei croissant com patê de ricota, o seu preferido — ele disse apontando para um prato ainda fumegante.

Ela observou a comida intrigada. Gostava de croissant, só não se lembrava de ter provado esse sabor em específico, ainda menos dele ser seu preferido.

Sentou, pegou um e o mordeu hesitante.

— É bom — murmurou dando outra mordida.

Ele sorriu e Sara sentiu a face esquentar. Ele ficava ainda mais lindo sorrindo.

Endireitando-se, focou em colocar sua vida nos eixos em vez de babar pelo homem a sua frente.

— Fale um pouco sobre você — soltou causando surpresa nele.

— O que exatamente?

— Tudo que quiser. Cor favorita, comida — indicou o próprio croissant, que ele sabia ser o preferido dela, enquanto ela mesma não sabia disso. — Qualquer coisa, até se mantém um esqueleto no armário.

— A essa altura você teria encontrado.

Sara riu, concordando com o comentário bem humorado.

— Comece pelo seu aniversário. Qual seu signo? Acho importante pra saber se temos uma conexão cósmica.

— Faço aniversário em vinte de agosto, sou de leão e não ligo muito para signos.

— Ah, só podia ser leonino. Dominador, arrogante e vaidoso — Sara enumerou batendo o indicador da mão direita em três dedos da outra mão ao mencionar as características. — Mas também são generosos, focados no sucesso e brilham em tudo que fazem — pensativa, comentou: — Acho que combina com meu signo... Perai.

Sara correu de volta para o quarto, pegou o celular e voltou para a cozinha mexendo no aparelho em busca da resposta.

Observando-a com uma sobrancelha erguida, Rodrigo sorria com divertimento.

— Você gosta mesmo disso — era uma afirmação, ao que Sara assentiu sorridente.

— Era meu passatempo preferido quando me unia as minhas amigas — comentou acessando uma das páginas, o sorriso morrendo ao lembrar que perderá a amizade de Isabel. — Sabe, a gente se reunia todo dia para ler o jornal, só a parte do horóscopo, ou comprávamos uma revista na banca. Aqui! Combinamos! — Comemorou movendo o celular para Rodrigo ver. — Somos intensos, de grande paixão e busca de objetivos, mas podemos ter problemas com a explosão emocional. É, encaixou certinho com a gente — reconheceu erguendo os olhos, os detendo nos lábios masculinos um segundo antes de volta-lo para a tela do celular, a face em chamas.

Rodrigo deu de ombros. Como dissera, não ligava para influências planetárias formadas no nascimento. Mas, vendo o quanto isso importava e enchia Sara de entusiasmo, perguntou:

— Já que enumerou os defeitos do meu signo, quais são os do seu?

— Não temos defeitos — ela respondeu de pronto, ajeitando a pose e o fitando com seriedade.

Rodrigo a encarou com olhos estreitados. E Sara manteve a expressão séria, mesmo querendo rir da descrença dele.

— Sério. Áries é só amor, carinho e alegria — ela disse compenetrada, sua boca repuxando de canto.

— E modestos.

— Muito — ela concordou, logo depois perdendo a luta para a risada. Ele a acompanhou na gargalhada, algo que transformou suas feições e, como se não tivesse limite, deixando-o ainda mais irresistível. — Voltemos a você, senhor leonino — disse refeita do riso. — Fale-me sobre sua família.

O tema era pesado, Sara percebeu no momento em que o semblante leve de Rodrigo esmoreceu.

— Meu pai, Sérgio Montenegro, era um homem severo, mas cuidadoso com a família. Minha mãe, Estela, tinha um sorriso lindo e o abraço mais quente e aconchegante que senti na vida — contou em um fio de voz, os cílios escondendo as íris escuras.

— Eles...? — Não precisou completar a pergunta, causada pelo jeito dele de falar sobre os pais, antes que o fizesse Rodrigo contou:

— Morreram quando eu tinha dezesseis. Foi por isso que fui para Cezário, pra morar com meus tios por parte de mãe. Cuidaram de mim e do meu irmão por um tempo.

— Lamento!

Ele moveu a cabeça com tristeza, aceitando a condolências em silêncio.

— E o seu irmão? — Sara questionou, estranhando Rodrigo ter um irmão que, mesmo ele passando por um momento delicado por causa da perda de memória dela, não o havia visitado ainda.

A tristeza sumiu dos traços de Rodrigo, inesperadamente sendo substituído por algo denso, pesado e sombrio. Ele a encarou por um instante com tamanha dureza que Sara perguntou-se se tinha feito algo errado.

— Não vejo meu irmão há algum tempo — ele disse movendo o olhar para longe dela.

— Estão brigados?

— Sim.

— Por quê?

— Nada com que deva se preocupar.

A frieza na voz dele a fez engolir em seco. Pensando em tudo que Laura disse que tinha feito no último ano, não conseguiu deixar de perguntar temerosa da resposta:

— Tenho alguma culpa nesse rompimento?

O olhar pesado retornou, rápido, mas perceptível.

— Não. Foi algo particular, entre irmãos — ele disse áspero.

Algo fez Sara duvidar, mesmo assim decidiu não persistir no assunto. Apesar de família ser um assunto importante no começo, meio e fim de uma relação, do jeito que Rodrigo se fechou ao mencionar o irmão, seria necessária muita esperteza e charme para arrancar novas informações. Valia a pena se desgastar só para saber de uma briga dele com o irmão? Da qual, segundo ele, ela não tinha nenhuma influência? Decidiu que não.

Retornou as perguntas simples, sobre gostos pessoais e outros detalhes supérfluos, sentindo uma sensação incomoda toda vez que se lembrava do olhar dele ao falar do irmão. Curiosidade, dizia a si mesma, mas, no fundo, sentia que era mais que isso.

Páginas em Branco ~ DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora