🎙Capítulo 1🎙

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Ira

Sabe quando você vai à praia pela primeira vez e você sente a areia pelando entre os seus dedos e escuta o som das ondas quebrando? É bom, né? E então você corre para a água e está frio, e já não é tão bom assim, e você vai cada vez mais fundo e sem dúvidas vai engolir um pouco daquela água salgada que vai foder a sua garganta e as suas narinas, e já não é tão bom assim. Mas então você se acostuma com a temperatura, com as algas roçando nos seus calcanhares ou, se for corajoso o bastante, com a sensação do vazio ao seu redor quando você flutua naquela bacia gigante e perigosa, e tudo volta a ser bom. Mas você vai ter que sair, seus dedos estão enrugados e você se cansa de brincar com as ondas, e você sente alívio... até que o choque do calor desconfortável da areia te atinge, e não é mais tão bom assim.

As coisas com Ethel funcionavam assim. Já não tão boas.

Quando eu a conheci ela tinha 17 anos, estava no lugar errado, na hora errada e, pra variar, com as pessoas erradas.

Eu estava em Las Vegas, era começo dos anos 70 e eu tinha acabado de fazer 20 anos. Meus amigos e eu, nascidos e criados em San Diego, estávamos dando uma volta pela cidade dos cassinos, pelo paraíso do dinheiro. Nunca me esqueci de como as coisas estavam naquele dia, de como eu me senti confiante com o braço para fora do carro, sentindo o vento feroz da estrada na palma da mão enquanto Vick fumava um baseado sentada no meu colo. Estava tocando Beatles no rádio e Sam, Tom e Daniel estavam berrando as harmonias enquanto eu não conseguia parar de sorrir.

A gente estacionou num pub qualquer mais à margem de todo o luxo, sabíamos que não poderíamos pagar por algo além daquilo.

E ela foi a primeira coisa que eu vi.

Eu ainda não sabia o nome dela, não conhecia o tom suave da voz dela, não sabia o que aquela boca sempre repuxada num sorriso maroto era capaz de fazer. Mas eu vi a Ethel, vi como nenhum babaca que estava cercando ela estava vendo. Eu vi a maneira como ela fingia gostar do que os outros gostavam. Vi aqueles olhos cinzas, os cílios tão longos que faziam sombra nas bochechas rosadas, vi o nariz perfeito e empinado. Vi os cabelos loiros como a areia da praia de Saud, nas Filipinas, vi as ondas que roçavam as suas costas sobre a camiseta branca. Mas vi, além de toda aquela beleza, uma menina triste.

Me lembro de Vick me puxando pelo braço para uma das mesas redondas do fundo do pub, para longe da garota dos olhos tempestuosos e da sua renca de admiradores. Mesmo sendo arrastado pra longe do balcão, não consegui tirar os olhos dela, nem mesmo quando me sentei e os rapazes pediram uma rodada, nem quando as apresentações no palco improvisado começaram.

- Alguém está no mundo da lua - Comentou Sam. Sam Harper não nasceu comigo mas cresceu comigo, e mesmo hoje quando os nossos dias ao sol chegaram ao fim, sei que Sam está comigo. Com a sua cabeleira encaracolada e o seu metro e oitenta de altura ele arrasava corações, uma virtude eu diria, pelo menos até que a banda ascendesse, depois disso, a postura boa pinta de Sam se tornou um pesadelo.

- Ele não desgruda os olhos da gatinha do balcão - Vick Bennet, nossa guitarrista, disse enquanto manchava de batom a borda da caneca de cerveja. Victoria era a minha melhor amiga desde que eu consigo me lembrar, sempre divertida, passava tanto tempo cercada de homens que acabava falando, agindo e gostando das mesmas coisas que um. O que eu mais gostava na Vick, além do seu talento inegável no palco, era que ela sabia se divertir, sabia como deixar o clima mais intenso, mais leve, mais pesado, o que fosse necessário. Ela era foda.

- Vão à merda vocês dois - Eu disse, mas estava sorrindo. Nunca me envergonhei de como eu agia quando estava perto da Ethel, sabia que estava mostrando o meu melhor quando estava perto dela. Parece estranho dizer isso enquanto conto a história de como nos conhecemos, mas é verdade, e a verdade pode soar doentia.

The EtherealsOnde histórias criam vida. Descubra agora