Um

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Sorocaba - Província de São Paulo,

Julho de 1875


É estranho num dia você estar bem e no outro acordar doente. Talvez fosse mais um resfriado de inverno. O difícil era se levantar, principalmente com a cabeça girando e o nariz escorrendo como a chuva que caía da telha do lado de fora. Já que, infelizmente, como digo eu, domingo era dia de missa e obviamente minha tia me arrastaria nem se tivesse com varíola.

Olhei pela a janela daquele quartinho. — Um “armário”, seria um nome mais apropriado, já que meus primos insistiam em deixar seu excesso de roupas, guardadas por lá. — Por um momento estremeci com os trovões. Julho não é mês de chuva, mas quando caía era para devastar quem ousava ficar por debaixo. Aquela, em especial, talvez tenha sido uma das piores que já vi. Fiquei pensando na colheita, esse tipo de temporal com certeza nos causaria algum prejuízo. Não que eu me importasse de algum modo, só de ver a cara de frustrado de Anthony até que não seria tão ruim.

Duas batidas violentas na porta me espantaram.

 — Já estamos saindo para a missa, se apresse! — era a voz taquara rachada de minha tia.

Mas a final, quem é que vai a missa numa enxurrada dessas?! Minha tia, com certeza. Ela é o que eu chamo de “devota fanática” ou “doente de Deus”, do tipo que se você pisar um centímetro que seja para a direita da palavra do divino, será castigado e irá para o inferno. Lembro-me de quando fui pego beliscando um pedaço de carne cozida que nosso vizinho pagão havia feito durante a quaresma. Nunca a vi tão indignada, e o coitado do moço sumiu da cidade desde então. Certamente ela o dedurou ao padre e as autoridades locais. “São filhos do Tinhoso” – acusava ela os não cristãos e protestantes, morrendo de medo de falar o nome do coisa ruim. Sobre os índios, em específico, dizia ela que eram selvagens e pecadores sem caráter. O senhor Porã, no entanto, parecia completamente o oposto, um sujeito divertido, engraçado e sempre que eu o visitava, contava-me histórias de sua tribo e seus deuses, por isso, desde aquele dia, guardei mágoa de minha tia e rancor de seu fanatismo ferrenho.

 Seguimos de carruagem até a Catedral de Nossa Senhora da Ponte. A chuva já havia cessado no meio do caminho e o sol da manhã brotou entre algumas nuvens negras. Minha tia disse que Deus fez isso para que não molhássemos a igreja ao entrar.

 Confesso que preferia ficar uma ou duas horas naquele prédio melancólico do que em casa, acatando as ordens de Anthony como um cachorro. Ele não ia na missa ao domingo, em vez disso, dizia a minha tia que fazia sua reza na capelinha da fazenda, o que duvido muito. Ela não questionava, mas eu achava irônico ela obrigar justamente eu a ir e não o próprio filho. Meus outros primos também estavam lá, Edward e Natanael. Edward, infelizmente. Como já se era de esperar, a primeira coisa que fez, ao sairmos da carruagem, foi estender a perna para a frente de onde andava, me fazendo mergulhar na poça d’água barrenta ao chão. Ele riu; o irmão, por outro lado, ficou sem graça e não disse nada, virando o rosto. Minha tia nem mesmo olhou para trás. "Parem de enrolação!" — a escutei dizer. Juro que senti vontade de esmagar a cara dele com um soco, mas o que um garoto de treze anos pode fazer de frente a um de dezesseis? Sim, eram gêmeos e completamente o oposto um do outro. Enquanto o mais velho resolveu me pegar para Cristo, o outro ficava quieto na dele, morrendo de medo de irritar seus irmãos, embora não parecesse concordar com aquele escárnio gratuito.

 Voltamos à residência com um sol bem menos tímido. Anthony nos aguardava com o peito estufado de frente a casa. Eu já o havia mencionado, certo? Filho mais velho de meu tio George, deveria ter, sei lá, uns vinte um, vinte e dois anos. Era um rapaz bonito e alto, devo admitir, ombro largo, forte, cabelos pretos como todos na família e com uma personalidade de Ivan, o terrível.

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