Trinta e Nove

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O céu estava limpo, pacífico. Nunca vi uma lua mais cintilante quanto aquela. Mas aqui na Terra, só havia angústia. Angústia trazida por Salieri. E, já a poucos metros, conseguia sentir sua presença. Era algo frio, sufocante, de trazer ansiedade. Parecia uma massa palpável, sem cheiro mas intoxicante. E, no caminho até ele, encontrei Martin de Alexandria.

— Está me seguindo? — ele resmungou. O que ele fazia sozinho na floresta? Parecia questionável.

— Estamos atrás de Salieri — Apolo respondeu por mim — O viu passar por aqui?

— Claro, também vi a Rainha da Inglaterra e Nicolau Copérnico. — como sempre, ele adorava ser irônico. Cruzes! Como isso me irritava! — Por que acham que estão perseguindo Salieri?

— Nós não achamos, nós estamos perseguindo Salieri. — dessa vez, eu disse — Mas já deveríamos imaginar que você não o viu, afinal, tudo o que restaria aqui seria apenas sua cabeça. Nem ele ia aguentar olhar para o seu rosto por tempo suficiente.

Ele sorriu debochado, depois se levantou. Antes ele estava agachado no chão todo sujo de poeira, por isso a limpou ao mesmo tempo.

— Tudo bem, eu vou com vocês. Quero ver com meus próprios olhos o Salieri que vocês estão perseguindo.

— E o que me impede de acreditar que você não está ao lado dele? — o acusei — Afinal, quem fica sozinho na floresta desse jeito? Ainda mais no local onde possivelmente Salieri passou?

Dessa vez ele soltou um risinho baixo com todo deboche que podia entregar.

— É sério isso? Não, eu não estou com ele. Eu tava treinando na floresta. Sinceramente, acho esse tipo de festival entediante. É só ver minhas roupas, veja, estão todas abarrotadas e sujas de pó. — eu decidi acreditar nele. Talvez por intuição, mesmo que parecesse patético de minha parte. Por mais que eu detestasse o olhar afrontador dele e o sorriso de dar náuseas, eu não senti mentira em seu comportamento.  

Ao longo do caminho, a floresta ficava cada vez mais iluminada, uma luz alaranjada, que lembrava fogo, embora não houvesse fumaça em qualquer parte. A luz ia ficando mais forte, mas ardida, se a olhasse bem aparentava se movimentar. Já naquele ponto sabíamos que não deveria ser algo bom.

De fato.

Paramos e encontramos o cavalo flamejante amaldiçoado, aquele que nos deparamos durante a missão da igreja abandonada. A mula-sem-cabeça. Mas esse não era o maior de nossos problemas. Seria bom se houvesse apenas um dele, assim como outrora na missão, mas os cascos que podiam-se contar ali certamente passavam de cinquenta. As criaturas viraram o corpo assim que as encontramos, como se nos vissem, nos observassem. Em seguida, a brasa que incinerava acima de seus pescoços se materializou em cabeças de fogo, tinham um olhar açoitador, firme e sedento por sangue.

— Acho que estou tendo um deja-vu – ironizei.

Antes que déssemos o primeiro golpe, uma balbúrdia nos fundos da floresta roubou a atenção das mulas. Elas ficaram em alerta e seus rabos flamejantes esticaram-se. Era um grunhido que se ouvia, um chiado ardido e familiar. Vi um risco esverdeado no céu. Ele seguia como um trovão acima de nós, destinava ofensivas sobre as mulas, faziam-nas cortes profundos em pontos certeiros, quase como um canivete dançando no ar. As mulas gritavam, seu brado queimava o ouvido. Depois elas caíam no chão, já mortas. Ao limpar a área, o risco diminuiu sua velocidade e sua imagem tornou-se mais nítida. Vi uma penugem esverdeada e colorida sob a cabeça. Era Nico, o pássaro de Liliana.

— Liliana! — chamei-a animado, depois de encontrá-la ao fundo da floresta. Com ela estava Elizabeth e a Senhorita Ada, a professora de Alexandria. — Eu não tenho palavras para agradecer. Você realmente nos salvou.

Homens Também Sentem MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora