Prólogo

187 53 239
                                    

Não há vergonha em implorar. Se sujeitar, se humilhar, se isso for te ajudar em algo. E, se isso te der a mínima chance de livrar do maior de seus medos.

Por isso não tive receio em implorar, enquanto era arrastado aos meus pesadelos. É fácil julgar o medo dos outros. Sempre com aquele leve tom de desprezo “Por que você tem medo disso?” As pessoas dizem. Mas apostaria um milhão de réis que praticamente nenhuma dessas pessoas, percebe que quase sempre nossos medos são causados por fatores externos, não somos culpados por ter medo de alguma coisa. Afinal de contas, não era porque eu queria, que meus pés descalços se arranhavam naquele barro pedregoso. Então não me culpe pelo meu medo.

 E isso até me faz ponderar o quanto as atitudes de certas pessoas podem afetar nosso futuro. Talvez até mais do que nossas próprias decisões. Somos levados pela correnteza como um galho pequeno desgarrado em meio a esse rio imenso que é a vida.

Meu pai, por exemplo, ele costumava dizer que tudo na vida há um sentido e cada decisão que os outros ou nós mesmos tomamos, mesmo sem pensar, é uma das raizes que o destino nos leva. Meu nome, dizia ele, era um desses ramos. Ele não escolheu o nome Franz só por conta do famoso Kaiser Francisco José da Áustria-Hungria. Mas é claro, porque segundo ele, com um nome nobre, decerto o destino me seria nobre e guardaria sucesso e riquezas. Foi quando deixei de acreditar nessa baboseira de destino.

Primeiro porque alguém que vivia numa cidade pequena, deslocada num reino onde há de mais longínquo no fim do mundo que era o Império do Brazil, não tinha outro futuro a não ser trabalhar, trabalhar e trabalhar, seguindo uma vida monótona. Meu pai até poderia ser nobre, ter lá seu título de barão e até poderíamos possuir uma pequena riqueza – nada que fosse de invejar a corte. De qualquer forma, não era como se houvesse algum futuro para mim fora do império, ou mesmo das fronteiras da província de São Paulo. Minha perspectiva era não ter nada além do que meu pai já possuía.

Mas o principal motivo que me fez enterrar qualquer menção a destino ou a uma divindade superior que escolhe nossos caminhos, se deu por conta dos trilhos que minha vida havia ousado seguir, agravando-se naquele fatídico inverno de 1875. Enfim, se esse não fosse um livro mas sim um monólogo entediante, vocês me veriam respirar fundo várias e várias vezes. Não é como se fosse a coisa mais agradável do mundo ter de relembrar certos momentos. Enrola minhas tripas para falar bem a verdade. Me lembrar daquela mão agarrando meu braço...

aquela
mão...

O final de julho parecia ser muito promissor. Haviam acabado de inaugurar uma estação ferroviária bem naquele fim de mundo, agora as pessoas poderiam chegar a Santos mais facilmente. A cidade estava crescendo também, soube de alvoroços em vários lugares de homens desempregados a meses que finalmente conseguiram voltar a trabalhar. Embora eu também tenha escutado por aí, boatos de que homens da produção de algodão corriam o risco de serem chutados para a rua. Mas, de qualquer forma, independente das notícias, as pessoas andavam com um sorriso alegre entre as ruas do centro, um sorriso cheio de esperanças para a futuro. Eu, no entanto, procurava engolir minha dor como se tivesse tentando enfiar para dentro da garganta uma goiaba inteira. Era áspera a mão que apertava o meu pulso, rígida, não têm como esquecer. Me puxava como se fazia com uma mula. E aquela voz, como eu detestava aquela voz.

 “Parabéns gambá, é isso que acontece quando você não sabe qual é o seu lugar!” – Anthony disse. Meus pés se prensavam no solo barrento, prensavam e sujavam-me, tentando impedir um destino certamente inevitável naquele momento. “Pare de resistir! Ou eu te deixo duas horas lá!”

 “Lá”, ele disse. Parecia não se importar para onde me levava. Ele, assim como meus outros primos diziam que “lá” habitavam os animais mais peçonhentos de todo o continente e onde os fantasmas dos escravos mortos que atormentavam a cidade, foram confinados por um padre há alguns anos. Um mausoléu de entulho e ferramentas quebradas. Escuro, úmido como uma caverna. “Lá,” o quarto de dispensa, ou, como eu carinhosamente me referia, “O quarto escuro”.

 Sua mão marcava meu pulso pequeno sem misericórdia. Abriu a porta que rangia mais alto que uma bruxa gargalhando e jogou-me com brutalidade, como um saco de esterco. “Uma hora... E se reclamar e espernear, serão duas!” E a fechou.

 Eu, contudo, me encolhi abraçando as pernas. Choraria, mas o medo que me eriçava, com certeza distraiu o suficiente as comportas de meus olhos que esqueceram-se de abrir. Tremia e muito por sinal, isso sim. Não conseguia ver nada, como de costume, mas não levou muito para que começasse a sentir meus braços formigando, como se algo andasse por eles, e a escutar murmúrios vindos dos cantos – mesmo que nem mesmo acreditasse em fantasmas naquela época.

 Certa vez, quando senti algo percorrendo minha cabeça como algum bicho ou inseto, meu corpo apagou e só acordei com a luz da porta se abrindo e meu primo gritando com impaciência para que eu saísse. Para ser sincero, naquele momento aterrador, tudo o que eu torcia era para desmaiar de novo e não precisar aguentar aquela eterna uma hora.

 Então pus a mão no bolso.

Senti seu toque metálico e a retirei. Infelizmente, com a escuridão, não podia ver as inscrições nem o rosto da Rainha Victória. Mas, sentir seu tato frio, mesmo que de maneira branda e passageira, me aqueceu. O terror passou a se desvanecer. Uma libra, uma libra que meu pai havia me dado há oito anos.

Por vezes, meu maior medo se tornou um grilhão, torturava-me dos rins ao coração e amarrava minhas mãos como as correntes de um escravo... Mas, pelo menos, meu pai estava ali comigo.

Homens Também Sentem MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora