Trinta e Seis

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Conheço todos os meus colegas de comuna.

Ao menos, pensava que os conhecia. Mas isso era mentira.

Eu não conhecia aquele Piatã.  

Nesses quase um ano em que convivemos juntos, ele era o garoto maduro e responsável entre nós. Aquele que sempre tinha uma resposta para tudo e uma inabalável perseverança quando se tratava de animar as pessoas. Ele tinha os seus defeitos sim, também era medroso quando se deparava com algo ou alguém mais forte do que ele e, às vezes, agia com insegurança. Mas eu entendia seu lado, Piatã carregava um peso que eu jamais carregaria na vida: ele não tinha pele branca, era um índio menosprezado pela maioria dos adultos de fora da comuna. Ainda assim, Piatã seguia sorrindo e animando os outros, não queria mostrar sua fraqueza. E nisso, de todos os sentimentos sejam eles positivos ou negativos de Piatã, a raiva ou o ódio acabava não se incluindo neles. Era impossível conhecer alguém mais paciente e impassível. Sim, essa era a imagem que tinha dele. Por isso, fiquei surpreso ao escutá-lo gritar com um dos pesquisadores ali da exposição e me deparar com um rosto carregado de fúria.

Primeiro me assustei, fiquei parado ali, como se flagrasse uma cena de guerra. Depois que minha cabeça organizou o que via, dei um passo até onde ele estava.

— Como você pode colocar este tipo de objeto em exposição, seu canalha?! — ele falava em inglês normalmente. Não foi a maior das surpresas, de todos nós Piatã era o mais inteligente, talvez até fosse esperado. Ele não nos havia contado que sabia falar, isso sim foi uma surpresa. — Você sabe o que esses objetos significam para nós? Como você ousa mostrar isso como se fossem simples decoraçõezinhas bonitas? — os dentes estavam cerrados, assim como os punhos, ele ia acabar fazendo alguma besteira. Me aproximei mais da bancada do pesquisador e vi o motivo de ele estar tão alterado. Por lá encontrava-se uma fileira de relíquias e objetos singulares, únicos. Vi esculturas de barro, estatuetas de madeira e lanças pintadas a tinta com penas coloridas atrás. Alguns dos objetos estavam danificados, sejam queimados ou só rachados.

— Piatã? — chamei-o e aquele olhar chamuscante cessou um pouco, mas ainda vi brasas queimando suas pupilas.

— Franz?! — ele vociferou com surpresa. Depois virou o rosto para o lado, desgostoso — Pensei que estivesse no setor alimentício.

— Sim, estávamos. Mas viemos nos encontrar com o imperador. — não era para conversar sobre o que fazíamos ali que eu chamei sua atenção, e ele sabia disso: — Eu já entendi — encarei um pouco mais os objetos —, não vou dizer para não ficar nervoso, Piatã. Mas não se esqueça, por favor, do que você sempre nos diz: o pior amargor que existe, é se entregar ao desespero e a raiva. — me arrependi imediatamente de ter falado isso. Mas já era tarde demais. Piatã apertou seus olhos em mim. Por mais que ainda naquele momento tivesse a imagem agradável e gentil dele, senti sem demora que algo bem azedo, intragável, estava para vir de sua língua. Ele abriu a boca...  

Mas nada saiu dela.

Piatã seguiu com a boca aberta por mais alguns segundos, mas prosseguiu sem dizer nada. Seus olhos cortantes se desviaram de mim e ele caminhou silenciosamente para longe dali. Vi sua língua se mexer ao mesmo tempo. Ele estava sussurrando, mas não era para mim. Talvez fosse para si mesmo ou, simplesmente, para ninguém. “E o que é que você entende?” — li em seus lábios.

O professor Tobias tentava apaziguar o nervosismo do pesquisador da exposição. Elizabeth, inexpressiva, se aproximou de mim ao mesmo tempo.

— Por favor, não se ire com Piatã. — a encarei bem, um tanto atônito. — Tenho certeza que esses objetos foram furtados de alguma tribo indígena que foi destruída. — não deixava de ser uma surpresa escutar aquela sua voz harmoniosa e gentil, com um singelo sotaque americano.

Homens Também Sentem MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora