Nove

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Me assustei. Haaka, o demônio maníaco todo retalhado, que não tinha modos e que comia igual um porco selvagem, de repente, estava quieto, num massivo silêncio. A boca estava vazia. Ele passou a língua entre os dentes e engoliu as migalhas que restaram. Seu olhar era direcionado em uma única linha reta, para o nada. Ele piscou umas três vezes seguidas. Não havia expressão em seu rosto, raiva, medo, alegria, nada. Os lábios se esticavam numa linha tênue e perfeita. Parecia reflexivo. Ele deveria pensar no que acabou de me dizer, deveria pensar nos barbarians.

 — Por que precisamos tanto matá-los? — ousei perguntar, arriscando trazer de volta seu rosto assassino. Mas não foi o que aconteceu.

 — Por que eles precisam morrer. Todos eles. — cerrou o punho. Sua expressão não mudou um único grau. Encarei a letra delta no peito de sua luva mais uma vez. Me senti deprimido por um momento.

 — O quê eles são?

Haaka virou os olhos de canto para mim, e voltou a encarar a parede.

 — Não sei o que faz aqui, se não sabe o que eles são.

 Pensei em responder alguma coisa, mas antes de minha boca se mexer, escutei passos se aproximando e me mantive em silêncio. Uma voz surtiu em meio a esses passos.

 — Eles são monstros. Bestas de outro mundo. — O professor Tobias retirou o chapéu e o deixou na mesa. Pôs uma mão no ombro de Haaka e prosseguiu: — Nosso mundo não é o único que existe. Quero dizer, há, além de nós, cinco outros mundos cheio de criaturas pensantes. Os barbarians, ou, os bárbaros, chame como achar melhor, vieram de um desses cinco mundos. — ele suspirou, escondeu o rosto com a mão, como se já começasse a se arrepender de me contar — Vieram da Terra Cinza, a morada da melancolia. São como feras, demônios insaciáveis que devoram corações humanos — me senti desconfortável. Óbvio que achei que fosse mentira, uma mentira com uma história muito bem elaborada. Era o lógico a se pensar, né? Já havia lido muita ficção e aquela história não era muito diferente disso. Mas me lembrei de todo aquele tempo que passei treinando com Tobias. Treinávamos para que, a final? Ficou mais claro ainda ao olhar no fundo dos olhos de cada um, de Haaka, de Isaque, de Tobias, nenhum deles parecia exibir qualquer coisa que indicasse que fosse mentira. Tobias e Isaque, em especial, tinham tensão contornada nos quatro cantos do rosto. Talvez uma insegurança, um nervosismo. Não sei dizer.

 — Isso que você insistia em me esconder? — já sabia que sim, mas queria escutar sua língua silabar. Mas não escutei. Ele só assentiu com a cabeça.

 Haaka se levantou e foi embora. Foi embora sem mudar a expressão, sem dizer uma única palavra e sem olhar para trás.

 — A mãe dele foi morta por um barbarian. — Tobias explicou, se sentando onde o rapaz estava. — É compreensível todo o ódio que sente.

 — Por que não me contou antes? — não o olhava nos olhos. Fugi para a janela. Mas vi perifericamente sua mão esconder o rosto mais uma vez.

 — Foi uma orientação da nossa Rhodes. As comunas tem a obrigação de proteger nosso mundo dessas criaturas. No entanto, a quantidade de membros tem diminuído exponencialmente e pouquíssimos tem entrado nos últimos anos. Grande parte foge ou desiste assim que ouve falar desses monstros. Alguns acham que é um absurdo e vão embora imaginando que somos loucos, já outros ficam com tanto medo que desistem de tentar ingressar. Foi decidido que contaríamos aos candidatos apenas um dia antes do teste final, para desencorajar a desistência súbita e diminuir as chances de desistirem no meio do caminho. — fazia sentido e era suficientemente crível. Não fiquei com raiva por terem escondido, compreendia o lado deles. Mas, senti medo quando escutei aquela história. E ali, de tantas dúvidas que poderiam surgir com uma revelação dessas, apenas uma pairava em minha cabeça:

Homens Também Sentem MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora