Capítulo 5

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A ideia de ir tão cedo estava fora de cogitação. Quem frequentava os bares da Lapa ao meio-dia? Acredito que boêmios, aposentados e estudantes de direito. A Porta do Inferno estava fechada no momento, mas a noite era um dos principais pontos de fervo carioca. Gael não mentiu nas reclamações. Pavlov, após a briga, nos jogou trabalhos de estudo sobre legislação e mapeamento da cidade como se fossemos estagiários.

"Se ele não nos levasse a sério, faríamos sem ele" Era o que eu pensava, e Gael devia ter uma ideia semelhante.

Eis que chegou às dez horas da noite. Nosso plantão havia acabado, mas ainda estávamos no batalhão. Preparamos nossos psicológicos para a missão. Nos dirigimos até o carro de Gael e saímos para Lapa, não muito distante do batalhão. A única coisa que nos atrasava era o trânsito.

— Isso pode dar muito errado. — Luana ia conosco, mas não estava nada confiante. — E se der errado?

— Calma, Luana, não vai dar errado. O contato que tenho é quente. — Gael virou o rosto para o banco de trás. Como se encarar os olhos dele passasse alguma confiança.

— Inclusive, como vocês foram parar na B.M.O.E? — Subiu-me a dúvida.

— Eu fiz a prova para a polícia. Me colocaram num grupo especial pelas notas, e Pavlov me recrutou. — Luana respondeu.

— Pavlov me buscou na prisão. Como uma segunda chance. — Gael me encarou.

— Você estava na prisão? — Questionei, surpresa.

— No Presídio Ary Franco.

Por um momento refleti sobre a resposta. Fiz uma careta de surpresa por chegar a uma conclusão. Fiquei boquiaberta.

— Você é gay! — gritei

— Eu não sou gay!

— Mas o Ary Franco é exclusivo para gays. — Luana reafirmou meu ponto.

— Eles me colocaram lá pelo medo da retaliação, já que sou preso militar.

— Você tem certeza que não é gay? — Perguntei.

Dava para ver as veias saltando de estresse na testa dele.

— Eu tenho certeza que não sou gay.

— Mas não ficou interessado por nenhum homem lá? — Luana ficou na ponta do banco. Inclinada para se aproximar de nós. — Algum rapaz legal, boa pinta?

— Tinha um, mas... — Gael corou, e se cortou rápido. — Parem com isso! Eu não sou gay, tá legal!? — Ele parou o carro. — Inclusive, chegamos.

Ele foi o primeiro a sair do carro, sem nos deixar continuar o interrogatório sobre a sexualidade. Não era o momento. Precisávamos ir atrás da resposta que ele prometeu ter. A Porta do Inferno tinha um aspecto condizente ao título. O letreiro em néon, vermelho, era convidativo. Parecia ser um bordel, assim como também uma balada. A entrada era iluminada pela luz de cor semelhante, e ia em direção ao subterrâneo.

O som da música eletrônica subia ao térreo. As escadas sumiram da nossa visão quanto mais fundo você ia — Tomem cuidado. — Gael falou em nossos ouvidos. Quase um mentor como Virgílio, mas tão entregue ao inferno como Dante. O escuro nos abarrotou a vista. Algumas luzes rápidas iluminavam o ambiente só para escurecê-lo outra vez.

Eu sentia os corpos. O suor. As danças. O esfregar. Cheiro de álcool. Estranha sensação de medo. Me via frágil, desolada. Como se meu corpo estivesse vulnerável. Pronta para ser atacada, ou apalpada. Temia tomar ações erradas.

Uma mão entrelaçou a minha. Quando notei, era Luana.

— Juntas. — Ela gritou, na voz fina, mas convicta.

O coração parou de palpitar. Havíamos perdido o contato com Gael. Procurá-lo era algo que não fazia sentido. Olhávamos para todos os lados, mas só víamos pessoas dançando. A única luz forte e fixa era fora da pista de dança. Dava para ver um bar iluminado no canto à esquerda. Puxei Luana para que pudéssemos pensar melhor fora da doidera.

Sentamos nos bancos frente ao balcão. Só nós duas ficamos ali, como duas velhas no meio da bagunça jovem. Nem sinal de Gael. No primeiro momento estava preocupada, mas agora desconfiava das intenções dele. "Luana deve estar com a mesma sensação que eu." Ela olhava o ambiente com detalhe, e deveria chegar à mesma conclusão.

"As pessoas aqui passam uma sensação de perigo."

Um metal frio e cilíndrico tocou na minha cabeça, olhei de canto para Luana e vi que havia uma pistola na nuca dela também. "Merda, é uma emboscada." Mantivemos as mãos expostas no balcão, e evitamos fazer qualquer movimento brusco que custasse a vida.

— Levanta! — O criminoso gritou no pé do ouvido.

Assim o fiz. Ele fez meu corpo se direcionar para a esquerda e com alguns empurrões incômodos na nuca indicava que era o lugar para caminhar. Nós fomos, passamos por uma porta de correr que dava para a cozinha do estabelecimento. Iluminada em branco, estava mofada e com marcas de gordura. Serviam apenas para depositar as bebidas. Até que atravessamos outra porta.

Nela, mais dez homens armados com fuzil aguardavam nossa chegada. Duas cadeiras estavam dispostas para nós. A "missão" tão pouco começou e foi por água abaixo. Antes esperasse os planos de Pavlov. Nenhum sinal de Gael.

"Não é o momento de usarmos magia." pensei. "São armas demais, vão nos fuzilar antes de matá-los."

Sentamos nas cadeiras, mas por sorte não fomos amarradas. Se pudéssemos dizer que era sorte durante a situação. A boca dos fuzis estava apontada para nós. Ou dançavamos conforme o desejado, ou íamos ficar mais esburacadas que a Av.Brasil.

— O parceiro de vocês está falando com o chefe — Um dos criminosos falou. — Esperem aqui. — Ele apontou a arma para mim. — Se ele fizer alguma gracinha, as duas belezinhas aqui vão rodar, entendido?

Não respondemos. Tive de conter o deboche na garganta.

Eles riam como se fossemos uma piada de mal gosto. Até que um estrondo enorme nos assustou. A poeira e fragmentos da parede voaram das nossas costas até aos pés dos criminosos. Os rapazes apontaram as armas para lá. Nos levantamos, e ficamos de olho na movimentação. "Aquela era a sala onde Gael estava."

Gael saiu, sujo de poeira e tossindo como um velho.

— O que vocês tão fazendo!? — ele reclamou

— O que você está fazendo!? — contestei.

— Vamos embora daqui! — Ele chegou próximo a nós. Puxou nossos braços.

— Ei filho da puta! Cadê o chefe? — O criminoso que barrava o portão apontou a pistola na cabeça dele.

— A porra do seu chefe usa os sintéticos. Assim como todo mundo aqui está usando!

De trás da poeira um braço, nada humanóide, amassou a fileira de bandidos à nossa esquerda. Parecia a pata grossa de uma barata. Coberta de cerdas afiadas. Que babavam um excremento que ao pingar no solo o fazia derreter.

O rosto da criatura era uma meia-lua, composto por mandíbulas que estalavam constantes. Faziam um barulho incômodo. No meio, apenas um olho semicerrado. Mirava as pessoas da sala com desdém. A criatura comia a bola de carne que tornou-se os bandidos. O sangue pingava, enquanto os dentes cortavam a carne e os ossos faziam barulho ao serem mastigados

"Crec! Crec! Crec!" Cada fechar de boca, o som dos ossos quebrados. Um dos criminosos, ainda consciente, gritava desesperado. Tentava se desgrudar da bola de carne. Ele conseguiu sair, só tinha metade do tórax. A altura espatifou a cabeça dele no chão, espalhando sujeira para todo canto.

A fileira à direita começou a atirar no monstro. As balas rasgavam a caixa toráxica, e vermes caiam do torso da criatura rastejante.

— Eles usam sintéticos — Gael repetiu. — Essa merda de lugar é um ninho de Slaafs.

A nossa frente a criatura estalava as bocas, enquanto comia os bandidos. Em nossas costas o som da pista de dança sumiu, e berros juntos a pedidos de socorro tornaram-se música. Cercados por Slaafs.

Agora sim. Estávamos no inferno. 

Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]Onde histórias criam vida. Descubra agora