Capítulo 18

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Ponto A:

Gritos, não só dos cidadãos que fugiam, mas também dos militares que estavam em comunicação conosco. Érica não pensou duas vezes. Retirou o comunicador do ouvido e jogou no chão. O equipamento se espatifou no asfalto, e virou poeira nas pisadas dos inocentes.

— Já sofremos baixas antes de começarmos o plano de evacuação. Esses gritos de socorro só vão atrapalhar mais.

A frieza de Érica me espantou, mas era compreensível. Ao contrário das ações irremediáveis, apenas abaixei o volume para não ser mais incomodada. A população nos ultrapassava. O problema era que tinham mais Slaafs que impedem a fuga pelo Santos Dumont.

Na irracionalidade do medo, eles tentavam passar pelas pernas e patas das criaturas. Uma que parecia um ogro de nariz longo como um cabo de vassoura. Outra uma Harpia de rosto virado ao contrário, e língua alongada. E um coelho macabro que rasgava as pessoas ao meio para beber o sangue.

No prédio a lateral havia um Slaaf em formato de centopeia. Ao invés de divisórias no corpo, ele possuía cabeças que berravam. Os gritos vinham dos mortos que não haviam conseguido fugir dela. As patas destruíram o concreto, mas não maltratavam a estrutura. Os Slaafs se alimentavam das vítimas. Mastigavam e faziam um som horrendo de ossos triturados pela força dos dentes.

"O que era um Slaaf?" Mal entrei na polícia, tão pouco saberia dizer. Só que o sentimento que eles traziam era ilógico. Minhas pernas tremiam, e eu tinha medo. Não era adrenalina. Mesquinharia. Ansiedade. Era a morte. A sensação de que eu ia morrer ali, sendo mastigada como os inocentes.

Por um segundo eu agradeci por não ser como os inocentes. Por ter magia e tentar ao menos lutar. O peso de pensar isso me magoou, mas não o suficiente para mudar de opinião. Era doloroso se ver tão desprotegido.

— Merda. — Érica tocou em mim. Consegui voltar à realidade por conta do toque. — São Slaafs de nível A. Todos eles.

Voltada ao presente, pude ver estratégias. Pensar no que poderia fazer. Era muita gente. Gritos incessantes. Atrapalhavam e incomodavam. Precisava minar os problemas. Toquei as pontas dos dedos umas nas outras. "Muralha de gelo Cruz!" Toquei no chão, e fiz surgir um extenso paredão de gelo em nossas costas. Fatalmente seria impossível salvar as pessoas que se arriscaram nos Slaafs. Coube a mim tomar a decisão de salvar os que não haviam nos ultrapassado ainda.

O paredão em primeiro momento aumentou os gritos. As pessoas sentiram-se enjauladas por causa da muralha, mas logo começaram a notar que havia destinado um caminho na lateral.

— Se eles forem espertos, todos fogem por dentro do Aeroporto. — Contei à Érica.

A prima sorriu. Zombou de minha convicção com sadismo estampado nos dentes. — Calculista, como sempre. — Uma das formas de dizer que era desalmada. Ainda tinha muito a aprender com Pavlov, mas ele compreenderia o sacrifício. Com certeza.

Érica uniu as mãos e inverteu o toque uma na outra. Criou a interpretação de garras com os dedos. "Ela vai usar? Agora?" Não podia ser. O uso da Complexidade requer muita mana, e usá-la no início pode afetar a sobrevivência durante a batalha. Ela me olhou, antes de terminar de ativar a técnica.

— Não estamos salvando só nossos traseiros. — Me respondeu, como se soubesse que eu estava num monólogo. — Ativação de Complexidade. Dragão de Gelo.

As escamas, asas, e garras envolveram-na como uma armadura glacial. Ela alçou vôo. O bater das asas elevou uma rajada fria, típica de nossa família. Érica foi para cima da Harpia de cabeça invertida. O Slaaf soltou a bola de carne que comia e tentou atacar o Sargento. A garra era como uma placa de ferro afiada. Rasgaria Érica sem problemas.

Érica atravessou o ataque da Harpia. Deixou uma tonalidade de suspense em meu peito. Quem havia acertado? Até que uma rajada de sangue saiu da garra. A pata da Harpia caiu.

— Isso é um... Sargento... — Fiquei animada.

Corri em direção ao coelho macabro. Érica havia feito meu coração encher-se de ânimo. Voracidade. Excitação. O medo não me paralisava. Ainda sentia a lâmina em meu pescoço, mas lutava para fingir que ela não me cortaria. Usei da mana para saltar alto. A cabeça do coelho estava a muitos metros de distância do chão.

Cheguei próximo a ele e comecei a conjurar as magias. "Me usarei de bomba para caso ele deseje me comer." Pensei. Envolvi-me com uma crosta fina e transparente de gelo. Dura como cobre, que poderia congelá-lo no toque.

O coelho moveu o tronco para trás. "Ele está fugindo?" Uma criatura dessas consegue ter medo? Todas que vi eram violentas. Será que tinha entendido minhas intenções? Sentido minha mana?

Uma pancada no braço direito. Era Érica, que foi arremessada em mim. Fomos jogadas para a esquerda por conta do impacto. Atravessamos as janelas do prédio. Destruímos os escritórios vazios. Os laptops ficaram despedaçados. Escrivaninhas viraram farpas e lascas de madeira espelhadas no carpete. As impressoras expeliram todo papel sulfite. Alguns caíram por cima de Érica.

O Sargento sentou, com dificuldade. Gemia de dor. Babava um pouco de sangue. — Merda. Minha costela. — Érica reclamou. Devia ter quebrado. Por sorte não nos ferimos uma à outra.

Olhamos para fora. As criaturas gigantes nos encaravam. Nos víamos como formigas incômodas na toca destruída. A Harpia logo regenera a garra cortada. Falha a minha imaginar que seria uma batalha simples.

Fomos encurraladas. Podíamos ouvir o caminhar artrópode da centopéia no prédio. Érica, ferida, levantou-se para ficar na frente da abertura. Ela usou as asas para tapar a visão deles sobre mim. Finos flocos de gelo saíam dela como pétalas.

— Evacue e una-se aos demais. — Ordenou. — Aqui não é um lugar bonito para você morrer. — Me olhou de canto. Viu que não havia movido uma palha. — Fuja soldado! — Berrou.

O ogro de nariz vermelho tirou da bainha a espada. Deu uma estocada para dentro do escritório. A colisão me fez fechar os olhos. Os abri devagar. Érica segurava a lâmina com as mãos. Usava a mana para não ser rasgada.

— Érica!

— Vai embora porra! Está me atrapalhando! — Se irritou..

Não tive coragem de contestá-la. Teria sido qualquer outra pessoa, mas não Érica. Levantei desesperada. Escorreguei nos escombros enquanto tentava correr. Fugi para dentro do prédio.

Aumentei o som do comunicador. — Roma! Gael! — Nada. Apenas chiados chatos. — Pavlov! — Nenhum deles me respondeu. Estavam mortos? Se houvesse mais criaturas como aquelas que viu agora pouco... Mortos?

Não. Mortos não. Só incomunicáveis. Precisava achar um ponto com boa área. As escadas! Corri para ela e comecei a subir. — Roma! — Mal percebia qual era o andar. Quando tomei por conta, estava no vigésimo. Não faltava muito para chegar a cobertura. Os chiados pareciam tomar uma voz rarefeita e fantasmagórica.

Na cobertura! Na cobertura terei amplitude! O último andar. Escorreguei nas escadas. Mal percebi que havia um líquido viscoso por onde pisava. Ele sujou todo o uniforme. "Sangue?" A brecha de sol que perpassa as janelas quebradiças me mostrou. Era sangue. Uma quantidade grotesca que não conseguiria ser produzida por apenas uma ou duas vítimas.

Mastigava. Algo no topo das escadas mastigava. Almoçava e deliciava a refeição. Soergui o pescoço para observar. A centopéia. Com dezenas de cabeças. Todas elas me olharam enquanto as mandíbulas insetóides consumiam uma bola de carne. As faces berraram. Alertaram ao corpo que estava em ameaça.

As mandíbulas se abriram em minha direção. Os berros me enlouqueceram. Iria ser a próxima cabeça grudada no corpo da criatura.

Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]Onde histórias criam vida. Descubra agora