A porta do inferno havia se tornado um ambiente precursor do vazio. Não havia mais ninguém. Apenas carnes frescas de Slaafs mortos, sangue dos humanos mastigados e destroços. Duas únicas almas permaneciam dentro do bar subterrâneo.
Pavlov mantinha a postura de combate erguida. Usou do braço para amortecer o chute de Roma. O pé da subalterna chegou ao ouvido do oficial, e o impacto o fez voar na parede. Quando se chocou criou uma cratera funda na estrutura.
A rã no ombro do Tenente se limpava. Havia ficado cheia de poeira por conta do concreto espatifado. Fechou as bilhas para não ficar incomodada.
— Passam os anos e você fica mais fraco. Como pode deixar ela me sujar assim? — A rã reclamou a Pavlov.
— Quer calar a boca? — Fixou os olhos em Roma. Não queria tomar outro chute. — Você está ficando ranzinza.
— Está me chamando de velha!? — A rã soltou a língua na orelha de Pavlov. — Se me chamar de velha de novo eu te dou outra linguada.
Pavlov observou Roma saltar para cima dele outra vez. Ela pretendia usar dos punhos carregados de mana para esmurrar o Tenente. "Essa mana não é dela..." Pavlov esquivou para a direita, e deixou a maga se espatifar nos escombros. "Ela não deve conseguir gerenciar tanta magia."
Como um monstro descontrolado, Roma não pensava em recuar. Gemeu no ranger dos dentes. Parecia guardar alguma raiva, ou mágoa, do policial. Ela correu para se aproximar de Pavlov. Quando próximos, começaram a trocar socos.
Os punhos dela encontraram os pulsos do oficial. Ele desviava os ataques de Roma com movimentos precisos, enquanto revidava socos para diminuir a pressão defensiva. Roma não era acertada. A velocidade nos pés a permitia evitar os choques daquele soco inglês esquisito.
— Está brincando com ela? — A rã pulou no cabelo de Pavlov.
— Vendo do que é capaz... — Respondeu.
Uma abertura. Pavlov moveu o torso para baixo. Esquivou de um soco desordenado da maga descontrolada. Sem base, ele ergueu o braço direito e socou em cheio a ponta do queixo de Roma. O choque do soco inglês eletrocutou todo corpo dela, e a deixou paralisada por um instante.
Pavlov entrelaçou um braço noutro — entre o braço esquerdo e o ombro direito de Roma — e girou no próprio eixo para arremessar a maga no chão. Violento e eficaz. Ele conseguiu fazê-la quebrar o piso de madeira.
— Ela é boa! — A rã franziu a boca. — Deveria ter feito um pacto com ela.
— Por que você está tão chata hoje?
Da poeira abaixo dos pés, Pavlov teve de tomar uma ação veloz. Ainda assim, a defesa dos braços não foi o suficiente para evitar os danos de outro chute. Roma não estava desacordada. Ao levantar, a maga demonstrava dor e cansaço. O braço direito foi deslocado na queda de judô. A quantidade de lutas no dia exigia o repouso. Ela não queria parar.
Asas azuis, materializadas de mana, surgiam em Roma. Ela estava irreconhecível comparada à prisioneira morta que Pavlov tinha encontrado na cela de Bangu. A carapaça que assumiu comportava o ódio carregado por algo que Pavlov desconhecia.
"Não me importa." O Tenente pensou.
— Por que!? — Ela perguntou. Levava as mãos ao rosto na tentativa de controlar os sentimentos que conturbaram os pensamentos. — Por que vocês são tão inúteis!?
Pavlov percebeu. Roma não só exalava descontrole. Também estava possuída pela dor. A dor da perda. Ele descansou os braços. Não era necessário ficar em postura de combate para isso.
— A dor de perder um ente querido é pesada. Imagine todos estes corpos. — Ele abriu os braços, como Cristo. — Todos representam famílias que não irão sorrir amanhã. Aqui está a morte dos filhos, sobrinhos, netos. Como policial, não posso os retornar à vida. Não sou a justiça. Não sou a vingança. Não sou a raiva. Não posso ser a punição.
Roma ainda tapava o rosto com a palma, mas deixava um dos olhos ultrapassar os dedos para vislumbrar o discurso do oficial.
— Se os retornasse a vida, seria Deus. Se fosse a justiça, seria imparcial. Se fosse vingativo, causaria injustiça. Se agisse com raiva, mataria inocentes. Caso punisse, era o dono da razão. — Pavlov sorriu para a garota — Policiais são apenas homens cegos que tentam consertar as coisas.
A resposta de Pavlov deixou Roma confusa. Havia ali, uma pontada de razão, mas a poética não a permitia desvendar.
— Eu não posso trazer seu irmão de volta, e nem quero. — Pavlov voltou a postura de combate. Com a feição séria, parecia ter dito tanto para dizer a verdade, quanto para provocá-la.
Roma tirou a mão do rosto.
"Meu irmão não vai voltar..." sussurrou para si.
Raivosa, voou para cima do Tenente. Quando próximos, Pavlov usou dos pulsos para desviar os ataques de Roma. Desta vez não se permitia errar. Cada abertura cedida era essencial para que ela sofresse um soco.
O soco inglês a fazia cuspir sangue, enquanto eletrocutava a maga para retardar seus ataques.
— Ela está conseguindo se curar, é por isso que não tem tanta força. — A rã via as feridas anteriores, feitas pelos Slaafs, sumirem do corpo de Roma.
"Imagine se tivesse." Pavlov não quis falar, pois a rã iria reclamar no pé do ouvido a noite inteira. Um chute. Roma acertou a boca do estômago dele. Desconcentrado por um único segundo. Carregada de mana, o empurrão o fez voar até a ponta do bar.
O escuro onde havia caído fez silêncio. Escondia o paradeiro do Tenente. Pouco tempo depois um brilho elétrico surgiu dos punhos de Pavlov. Sem resquícios de machucados. Roma em sua loucura percebeu. "Ele não toma dano?" Estava sem uma única gota de sangue para fora do corpo.
Ela sentia acertá-lo. Os órgãos machucados, e a carne amassada. Quando atacava Pavlov era capaz de ouvir o choque dos ossos da mão dela na costela do Tenente. Então por quê? Qual o motivo dele não se machucar?
— Você é forte, reconheço. — Pavlov limpava a sujeira da roupa. A rã também. — Só que para me matar tem que esperar chegar aos meus noventa e nove anos!
Pavlov correu para cima dela. Assustada, Roma tentou socar o rosto de Pavlov. A feição séria, de um homem que sentia prazer na luta, dava medo.
Ela errou. O soco não o acertou. Outra vez, ele abaixou o torso. Desta vez, subiu o tronco rápido. O soco inglês chegou a parar no queixo de Roma quando ela recebeu o gancho.
Ao cair, estava desacordada. A mana desconhecida que a envolvia sumiu.
Pavlov foi até a adega, e tirou da geladeira — intacta — uma cerveja gelada.
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Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]
FantasiaCampeão do The Wattys - Carta Coringa e Gancho mais cativante Roma testemunhou o brutal assassinato do irmão, o mago mais poderoso do Rio de Janeiro. Sem o paradeiro do real assassino, e apelo popular. Ela foi condenada ao crime cometido contra o pr...