Capítulo 27

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Assistia dentro de meus próprios olhos. Era como se a alma estivesse presa num lodo pegajoso. "Por que?" Por que não conseguia retomar controle da própria consciência? Ose... Para todos, os Slaafs sempre foram bestas sanguinárias. Acabei desmentindo essa ideia no primeiro toque que tive com a droga.

No momento em que estava para morrer e sentir o abraço da criatura. A magia... Nunca havia sequer interpretado algum dia o saber sobre esta ciência. Até aquele dia. Nos encaramos. Algo demoníaco, de pelagem felina e asas de morcego. "Agora somos um." Ele me tocou uma única vez. Fiquei íntimo da magia no mesmo instante. Ele me passou tudo que meu cérebro podia aguentar. "O resto você aprenderá de próprio dom."

Eu o rejeitei. Por medo. Por falhas. Sempre o rejeitei. Foi o descontrole sobre esse poder que causou o assassinado daquele jovem inocente. Agora... Ele aqui... tomou conta do meu corpo outra vez...

Conseguia ver Bruno empanturrar Oblívio em chamas. O mago cientista não tomava sequer um único dano. O fogo adentrava na vastidão da matéria escura do corpo dele, e sumia. Ose via a luta dos céus, enquanto deixava os dois se eviscerar até a morte.

— Enxergas? — Ose questionou num monólogo.

— E-eu? — Não imaginei que estivesse me ouvindo.

— Sim. — Respondeu. — Como ser herói e vilão? Mocinho e malvado? Criador e criatura? — ficou em silêncio. — Em tese, todos somos. Nunca seremos unilaterais.

— Do que você está falando, Ose!? — Lutava para me desgarrar do lodo, mas ele só me sufocava mais. — Me larga!

— Não existe alma puramente malévola, e tão pouco benévola. Só que não citamos o Diabo como cristão, nem Jesus como pecador. Entende, Gael?

"O que?" Fiquei em silêncio.

— Você acreditou que dava para fingir que não era um mago. Assim como fingiu que não era um Slaaf. Quem acredita em recusar a verdade pelo medo de ser aquilo que se é. Morre nas gotas do ego.

— Não... Não foi você que matou aquele garoto. — O lodo me encobria, apenas a boca mantinha-se de fora. — Fui eu. — Por que somos um.

— Quanto mais me recusares, mais forte serei. Pois sou acima de tudo, vosso ego. — Ose não proclamou nada mais.

Por um momento, desisti de lutar pelo meu corpo. Quanto mais entregava-o a ele, mais sentia-me tomar conta outra vez. Aceitei as verdades. Queria lutar contra meus demônios, sendo eu um deles. Não poderia lutar contra mim sem me destruir antes de fazer o mais importante. Me aceitar.

"Eu sou você, Ose."

Eu recobrei a consciência. Mudado em aspectos físicos, não tive necessidade de aprender a voar. Ose, outra vez, me ensinou tudo que precisava. Como se tivesse quebrado uma casca de pulpa, evolui. Bruno relutava contra Oblívio de maneira intensa, mas estava acuado. O favelado escorava nos escombros enquanto o cientista caminhava até ele. Oblívio extinguiria a existência de Bruno em instantes.

Voei para próximo deles.

— Oblívio! — O chamei.

— Encontrou benevolência. Ose? — Parou de caminhar e olhou para cima.

— Gael. Cientista medíocre do caralho. — Contestei. — Eu vou destruí-lo.

Toquei a palma das mãos e as inverti uma sobre a outra. Nos dedos fiz o sinal de chifres. "Ativação de complexidade. A verdade" Meus braços ficaram pretos. As veias compunham linhas incandescentes de lava.

— Uau! Para um Slaaf você é bem mais inteligente do que imaginei! — Oblívio virou-se para mim. — O que mais de interessante tem nisso?

— A verdade! A minha ativação de complexidade consegue enxergar a verdade de cada magia! Com isso eu posso descobrir qual o ponto fraco dela! — Assim que sorri, pude ver o rosto de Oblívio ficar chateado no mesmo instante. — Você não consegue anular tudo que toca seu corpo! Apenas escolhe as partes que não podem ser tocadas, mas isso expõe outros membros. Atualmente, sua cabeça e as pernas são pontos fracos.

— Seu filho da-

"Destruição da inocência" invoquei ao meu lado direito uma imensa esfera de coloração branqueada, tão pura quanto a neve de Luana. "Renascimento do pecado" A esquerda, uma bola preta. Elas começaram a unificar-se acima de mim, misturando cores e poder. — Cinza... Destruição do pecado. Não é necessário mirar em teus pontos fracos. Só te destruir por completo.

Bruno fechou os olhos. O nível de poder que caia sob vossa cabeça o fez aceitar que poderia morrer no mesmo momento. Um enorme clarão cegou os olhos de todos. Além do enorme estrondo opaco. Pude deleitar os gritos desesperados de Oblívio.

Devagar a magia começou a perder força. Onde havia caído apenas sobrou uma enorme cratera. Bruno, descrente da existência da vida, estava sentado na outra ponta. Um pouco assustado com a magia que presenciou. Dava para ouvir no peso da própria respiração.

— Você está bem? — O questionei. — Se veio para se vingar sinto muito, mas hoje não é o dia.

— Estou. — A voz rouca dele escondia pigarros aos quais cuspiu ao tirar a máscara por alguns segundos. — Eu não estou me importando com você, hoje.

Ele respirou fundo, e olhou para o fundo do buraco. — Ele não está morto, dá para sentir o cheiro dele por aqui. — Bruno não tinha medo de mim. Os olhos dele eram fortes, incisivos.

Desperto, o favelado fitou minhas costas com temor sob a íris. Não tive tempo de me alertar, mesmo que a boca tenha aberto na ânsia de um grito. Senti a asa direita ser puxada com tamanha força que os músculos se esticam como chiclete. Olhei para a dor. Oblívio reapareceu, iroso. — Eu vou te ensinar a respeitar um cientista. Slaaf nojento. — Assim que arrancou a asa pude ver resquícios da matéria escura sob o cotoco da ferida. "Está me consumindo." Tive de arrancar a pele fora, usei da garra para rasgar as costas e evitar a magia de Oblívio.

Me afastei dele. Uma forte pressão de magia emergiu do mago. Ele formou círculos com os dedos e os levou de encontro. Inverteu as mãos uma contra a outra — Ativação de complexidade, Nebulosa Negra. — A magia que antes estava carregada nele começou a desprender-se do próprio corpo. Formou uma nuvem extensa e preta, que desintegrava tudo que tocava. Até mesmo o solo. Oblívio começou a aplainar dentro do próprio poder. Com a saída da magia do corpo dele, a pele branca e esquelética começou a surgir. Ele tinha um cabelo lambido e mal cuidado, além de um olhar pesado e tristonho. Vestido de jaleco, como um cientista em fuga do serviço.

Bruno tentou jogá-lo numa bola de fogo, mas quando tocou na nuvem só fez Oblívio irritar-se. Saltei para cima do favelado e o agarrei pelo tronco. Pulei com ele junto a mim para me afastar o máximo possível do raio de destruição. "Ele vai destruir todo o Aterro do Flamengo assim."

— Por que está me salvando? — Bruno, preso em meus braços, não estava nada contente.

— Eu não sei. — Fui sincero. — Mas se quisermos ganhar dele, precisamos lutar juntos.

Bruno ficou quieto. Parecia combater o próprio ego para aceitar a oferta. Paramos dentro de um prédio. Oblívio demoraria para nos alcançar, mas ele sabia que não precisaria ir atrás de mim.

— Qual o plano? — Perguntou.

— A ativação de complexidade dele é uma aposta. — o encarei. — Quando em estado normal, ele permitia que partes do corpo ficassem vulneráveis. Agora, todo o corpo está exposto, mas aquela nuvem não vai permitir encostar no usuário.

— Então temos que forçar a entrada.

— Fazer a magia criar uma abertura. Mesmo que para isso tenhamos que causar uma destruição sem escala.

Bruno sorriu. — É. Pode acontecer.

— Preciso que você comece antes de mim. Eu tenho que retirar Ricardo daqui.

Bruno foi para a saída destruída do prédio, sem trocar mais palavras comigo. Estava pronto para o contra-ataque. 

Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]Onde histórias criam vida. Descubra agora