Capítulo 11

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Ainda sim, depois de tudo que passei e fiz, detesto este clima. Não partilho do sobrenome de todas as pessoas que aqui jazem, mas sinto uma conexão sincera com cada um destes corpos, ossos, e poeira. Engavetados em armários que chamamos de cemitério. Os corpos pretos vêm crescendo por aqui. Não, eu menti. São apenas eles que ocupam este lugar.

"Alguns deles vieram para cá por minhas mãos." Confessei solitário. "Nenhum deles me dói mais, do que a vossa alma." Dedilhei lento pelo sepulcro de mármore branco. No meio das gavetas e corpos enterrados, ele havia sido sepultado como a morte de um Deus.

"Caleb" estava escrito na lápide. "O anjo enviado para proteger o mundo." Havia sido posto como dedicatória.

— Eu matei o anjo de Deus. — ri, mas meus lábios não ficaram alegres. — Me perdoe.

A quem queria mentir? Mal podia balbuciar qualquer palavra que a boca tremia. Os olhos enchiam-se de lágrimas, e o choro me tomava conta como a mais potente das magias, a tristeza.

Deixei rolar. As lágrimas deslizaram sob o rosto e pingaram na sepultura quente do dia nublado e abafado. Elas escorregam para fora da lápide, como se o lamento fosse rejeitado por Caleb. Como se dele não fosse capaz de receber um perdão.

"Tudo bem, Caleb. O caminho que escolhi, era passível de não ter vosso perdão."

O cemitério do Caju tem uma aura esquisita, que todo preto que vai lá nota. A sensação de que não importa o quão grandiosa, justa, honesta tenha sido a vida.

— Não importa os sonhos conquistados. As carteiras devolvidas. Os trabalhos além do expediente. Seremos enterrados aqui, como os pretos que nunca serão lembrados. — Conclui os pensamentos em voz alta

.

Puxei uma cartela de cigarro do bolso. Nunca fui de fumar, mas prometi a mim que faria isso sempre que fosse visitar alguém querido. Era hábito da minha matriarca, passou a ser meu.

— Atrapalhamos?

— Nunca atrapalham. — soltei a voz entre as tragadas.

— Compartilha um cigarro então.

— Não é porque você tem dezessete anos que pode começar a consumir drogas legais, Rei.

Bruno e Rei vieram ao meu encontro. Não perderam tempo em me consolar com alguns tapas nas costas enquanto me serviam com os abraços fortes.

— A missão foi um sucesso, mas não da melhor maneira. — Bruno pegou um cigarro da cartela. — Tua amiga estava lá.

— Minha amiga?

— A irmã de Caleb. Ela foi solta. — Bruno deu um trago. — E está com Pavlov.

— Isso foi inesperado. — tentei disfarçar a surpresa, mas meu rosto sempre foi fraco para feições.

— Eles chegaram lá antes de nós, e haviam destruído o bar inteiro. — Rei sentou ao meu lado. Tirou do bolso o celular para jogar. — A vantagem é que os traficantes não vão focar as atenções na gente.

— Ivan. — Bruno ficou parado na minha frente. — Você está bem?

— Hoje era aniversário do Caleb. — Olhei para o túmulo. — A data me trás recordações. — Limpei o rosto. — Perdão rapazes. Esperamos tempo demais para que me recuperasse é que devem estar pensando. Não se preocupe, agora é o momento de nos movimentarmos.

— Não é só isso. — Rei invadiu o diálogo. — Bruno encontrou o assassino do Jorge.

Rei mal terminou de me fofocar a missão, e as mãos do nosso parceiro se incendiaram num ardor voraz. Queria incendiar tudo — menos os companheiros.

— Sem violência aqui, Bruno. — Repreendi. — Está na terra de nossos antepassados. Há escravos e descendentes de escravos aqui. Não se permita explicitar ódio na frente deles.

— Desculpa. — Bruno apagou as chamas. — Merda! Acabei queimando o cigarro.

Aguentamos por alguns segundos, mas não o suficiente. Gargalhamos, eu e Rei, da inocência dele.

— As coisas vão andar agora, rapazes. A próxima ação já foi idealizada.

— Imaginei que o encontraria aqui. — Passos fortes na terra seca. — Hipócrita assim como as ações. — Ares no nosso caminho. Trajado na camiseta preta e calça taiga branca.

— O leão de Deus... — me levantei, e coloquei os companheiros atrás dos braços. — Visitando sua futura casa? Primeiro Protetor.

Desde a morte de Caleb, Ares tomou a primeira posição dos protetores como o maior mago carioca. Nos conhecíamos de longa data, e o título fazia jus. Ele não perdia em poder destrutivo se comparado ao Caleb. Para um protetor, ele não tinha a imagem embelezada de um. O cabelo raspado, a sobrancelha curva. Os lábios grossos. Um branco de traços negros.

— Você não devia estar aqui. É o recinto do meu amigo. — Ares deixou arder as mãos em fogo, distinto do azulado de Bruno. Vermelho e amarelo como a superfície solar.

— Quer terminar nossa velha batalha? — Coloquei fogo em minhas mãos também.

Sorrimos um para o outro, como maníacos. Estávamos excitados. Nossos sorrisos iam de orelha a orelha. Rei pegou no meu braço, e me trouxe a realidade. Não era o momento, muito menos a hora.

— Outro dia. — supliquei a Ares. — As pessoas precisam te ver sendo herói, ou me enxergar como monstro.

Ares retirou a magia das mãos, e ficou posicionado de modo inofensivo. "Como se pudesse existir um modo em que ele parecesse assim." — Não venha mais ao sepulcro de Caleb. — Ares soltou raiva no trincar dos dentes. Parecia chateado. — Não é digno de estar no canto de repouso do meu amigo.

Olhei para trás, e movimentei a cabeça. Era hora de partirmos, já não éramos bem vindos ao cemitério. Ultrapassamos o corpo de Ares. — A próxima vez que nos encontrarmos. Caos irá acontecer — avisei.

— É a sua sina, Ivan! — gritou, enquanto me distanciava. — Só haverá caos e tragédia em tua vida!

Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]Onde histórias criam vida. Descubra agora