O público estava fervoroso. Isso se dava por conta do calor abafado das vias do asfalto quente do Aterro do Flamengo, mas também pela impaciência de respostas. Ataque de Slaafs. Morte de magos. Despreparo militar. A população carioca queria ouvir de seus governantes eleitos respostas adequadas. Queriam ser capazes de andar na rua sem temer as vidas, há problemas além de latrocínios.
Mal sabia contar quantas pastilhas havia ingerido. Por trás das cortinas que dividiam o fundo do palanque da multidão fervorosa me senti privilegiada. Se olhasse a direita, conseguia ver o público raivoso. Cachorros maltratados latindo pelo osso. Rasgaram o governador com palavras. Se olhasse a esquerda via os engravatados. Haviam cinco umidificadores de ar envolta deles. Ainda sim, suavam. Como porcos para o abate. A mamata estava por um fio se não dessem a resposta correta.
Pavlov estava no quinto cigarro. Alguns deputados haviam pedido para não fumar tão próximo. Me diga se ele se importou? Cagava para opinião dos engravatados. Assim como Ares.
— Você está forte. — O mago número um me elogiou. Nostálgico. — Ele estaria orgulhoso de te ver aqui.
— Ele ficará quando conseguir decepar a cabeça de Ivan.
— Não fale esse nome alto. — Sussurrou sarcástico. — Eles começam a ter prisão de ventre só de ouvir. — Apontou o polegar para os políticos.
Alguns ouviram o deboche, mas não tinham coragem para contestar. Acabei por rir também. As cortinas abriram. O governador não estava nada preparado para o discurso. Só que o comício estava atrasado fazia meia hora.
Quando ele pôs o rosto ao povo, todas as câmeras disputam pelo melhor ângulo. Mal levantou a mão para saudar os presentes e já ouviu vaias. Só suava frio. Tinha medo de linchamento. Não o subjugar por isso, também teria medo naquela posição.
— Também somos povo. — Falei por impulso. Estava ali, de braços fechados, na espera das palavras do governador.
— O que você disse? — Ares não prestou atenção. Na verdade, nem falava com ele.
— Também somos povo. — Eu repeti. — Mesmo que não estejamos na multidão, também queremos respostas.
Ares balançou a cabeça em afirmativo. — Ele é um filho da puta.
"Eu os agradeço por estarem aqui, e participarem deste comício. Quero acima de tudo esclarecer nossas angústias. Acalmar o coração do povo carioca!
Voltemos oitenta anos! Onde a magia foi compartilhada pelas famílias nobres de fora do Brasil e o rumo mundial de como iríamos reger diversas questões sociais seria diversificado. O ínicio, com o domínio das famílias primárias criou um momento de crescimento científico intenso. Junto a pesquisas farmacêuticas poderosas e diversificação da maneira de enxergar coisas substanciais como o conhecimento e o poder.
Com o avançar de trinta anos a disseminação de uma droga capaz de capacitar pessoas sem magia para utilizá-la retornou a insegurança de cem anos atrás, e tivemos de aprender com magos como retomar a segurança pública em um novo contexto de perigo. A morte por magia ascendeu a uma escala agressiva. Mais da metade dos homicídios causados por ano aqui no Rio tem se encontrado resquícios de magia.
Por conta da magia, progredimos no científico, social e cultural, mas também nos condicionamos a um medo mais cruel.
Graças a iniciativa de Roberto Grozny. A polícia militar foi reformulada. Com o grande marco do grupo de magos especiais. Os protetores. Desde então, a média de casos de ataques de terror cometidos por Slaafs, e magos criminosos vem caindo vertiginosamente. Por causa de suas ações, e da sucessão de Caleb, o maior mago carioca que tivemos registro.
Que Deus os tenha."
— Ele está tentando glorificar os protetores ou criminalizar os magos? — Sussurrei para Ares.
— As duas coisas. — Respondeu. — Quer tirar o dele da reta, mas colocando um inimigo em comum. — Me olhou de canto. — Isso, Roma, chama-se populismo.
"Nós temos um inimigo maior agora. Temo que todos saibam o nome dele. Saibam que mesmo sendo um alvo potencial, ele não é capaz de inferiorizar ou preocupar a polícia militar, tão pouco deve trazer medo a população carioca!"
As pessoas gritam enfervecidas. Aplaudiram as palavras do governador como se estivesse colocando o próprio peito à prova.
— Ivan? — Questionei.
— Inimigo em comum. — Ares continuava de braços cruzados. — A culpa nunca é dos descasos do Estado. É sempre um inimigo em comum. — Ele acenou com a ponta do nariz. — Brancos de classe média. Coloque um favelado como alvo, e eles sempre vão querer atirar.
"A morte de Caleb. O ataque violento a candelária. O peso de cada alma que jaz por causa das atrocidades de Slaafs e magos pesa em minhas costas, mas não podemos recuar. Eu sei que eles não vão abaixar o poder de fogo. Pois nós também não!"
Aplausos.
"Não quero que o próximo num destes ataques seja meu filho, ou o de vocês! Por favor, me empreste o poder e a determinação do povo carioca! Para acabar com essas atrocidades! Pois a partir de hoje, nós vamos acabar com essa matança! Os únicos que irão morrer, serão eles!"
O palanque estremeceu, em meu privilégio no intermédio pude ver as placas de madeira retorcerem como onda. A estrutura não aguentou. Foi destruída de baixo para cima com a ascensão de uma criatura. Um chifre de besouro Hércules rasgou a plataforma. Farpas voaram e deram imagem ao demônio.
Não tinha dentições. Tinha o escopo e estrutura de um escaravelho. Braços insetóides que cricrilam num som de arrepiar a espinha. Ela urrava. Abaixo da carapaça que protegia a cabeça, dezenas de olhos fervorosos sem globo ocular.
Um Slaaf, sem sombra de dúvidas, surgiu abaixo do palanque. Não estávamos preparados. Havíamos imaginado quaisquer ameaças ao governador surgindo em todos os cantos. Mas abaixo dele?
A plateia, paralisada, via o político voar. O chifre levantou-o tão rápido que o corpo não aguentou o impacto. Era apenas um saco de carne todo desossado. A cabeça estava próxima dos pés. A coluna rasgou a caixa toráxica.
O povo começou a gritar e correr desesperado. Não iam ouvir instruções militares naquele instante. Eu havia vivido aquela sensação uma vez. Ela repetia. Pessoas pisoteadas e um desespero atônito. O descontrole e o caos retomavam a mim o medo que era enfrentar essas criaturas.
— Atenção! — Alguém falava pelo meu comunicador. Uma voz feminina. Luana? — Há mais Slaafs! Repito. Há mais Slaafs.
Olhei para o alto. Os berros, ruídos, grunhidos. Eles escorriam pelos prédios. Comiam o concreto. Alguns com asas dracônicas ou de urubu. Outros tão líquidos e gosmentos quanto o catarro. Dentes e mais dentes.
Toquei o comunicador. A mão tremia. — Quantos Slaafs!? — Ninguém me respondeu. — Quantos!?
— Deve ter uns cem. — Gael respondeu, desorientado.
Estávamos numa fazenda de abate. Somos a refeição dos monstros. O plano de defender o governador havia sido eliminado na primeira oportunidade. — Roma! — Ares me gritou enquanto corria para próximo de Pavlov.
O prefeito estava sob nossa proteção. Tínhamos de tirá-lo de lá.
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Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]
FantasiaCampeão do The Wattys - Carta Coringa e Gancho mais cativante Roma testemunhou o brutal assassinato do irmão, o mago mais poderoso do Rio de Janeiro. Sem o paradeiro do real assassino, e apelo popular. Ela foi condenada ao crime cometido contra o pr...