Capítulo 19

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Ponto B:

O Slaaf, com a cabeça pontiaguda como tricerátopo, grunhiu para mim. Foi o último som que saiu da boca dele. Usei o braço esquerdo para envolver o pescoço. O arranquei fora. Só deixei a cabeça na posse da mão agigantada.

— São muitos, Ricardo! — Havíamos matado mais de cinco Slaafs. Ainda sim, outros surgiam.

Olhei para o Slaaf cinza. Gordo e de cabeça minúscula. Ele corria em minha direção, cambaleante, como se passasse mal. Do centro da barriga dele, um rasgo formou-se de dentro para fora. Ricardo sobressaltou a carne fresca e apareceu a mim. Sujo de tripas e restos de outros inocentes.

— Sério? Nem percebi!

O sargento era incapaz de me levar a sério mesmo no ápice de um desastre. Continuamos a lutar contra os monstros. Matávamos Slaafs com facilidade, pois sabíamos como era ser um. As criaturas eram poderosas. Por vezes rasgaram meu corpo. Trucidaram o estômago. Me partiram ao meio.

A única vantagem que tínhamos. Era que podíamos nos regenerar. Ricardo extraiu de mim um nível de poder que nunca havia imaginado.

Algo me incomodava. — Ricardo. — Chamei o sargento. Num tom mais sério. Ele ainda sugava o sangue dos Slaafs com as bocas no corpo.

— Sim. Eu também notei. — Me respondeu. Estávamos na mesma página.

Alguns inocentes fugiam enquanto tentavamos neutralizar os monstros. A rua não era estreita, mas perigosa o suficiente. Ainda sim, ninguém teria a insanidade de ficar nela por muito tempo. Eu estava enganado.

Haviam quatro figuras estranhas nos encarando. Eles observavam nosso modo de lutar. Os Slaafs não os atacaram. Não tinham medo do desastre. "Eles fizeram parte do ataque" cheguei a conclusão. "Outros magos?" Estranho. Podia ver mana fluir deles, mas não tão límpida quanto a de um mago. O que eram?

Me segurei na cabeça de um Slaaf esguio. A girei no próprio eixo. Ossos quebraram e a vida dele se esvaiu. — Vocês! O que querem? — Berrei ao quarteto. Nada responderam em dado momento. Pior do que o silêncio, eles debocharam.

Uma sombra pairou sobre minha cabeça. Olhei para cima. Tinha uma estrutura esquelética, e duas asas angelicais. Sem cabeça. Equipava um tridente. Me joguei para frente, mas o impacto do garfo quando atravessou o chão me arremessou para a entrada de um prédio.

"Os Slaafs. Estão mais fortes." Analisei o momento. "Não." Meus olhos esbugalharam, como se tivessem matado uma charada. "Eles são mais fortes!"

— Ricardo! — gritei o nome do superior, mas ele estava distante para me ouvir.

Por instinto, olhei para a direita. Um chute alto vinha na direção do rosto. Reflexo. Ergui a palma da mão. Protegi que o golpe viesse direto. O impacto, carregado com mana, me jogou longe. Destruí duas colunas da entrada com as costas. Havia cortado o supercílio. O sangue descia pela testa.

Há quanto tempo estava ali? Meu corpo pedia repouso. Não podia mais regenerar e lutar. Ou fazia um ou outro. Ainda sentado na frente da terceira coluna. Descrevi o adversário nos olhos. Usava calça marrom. Uma camisa branca de lã, com manga longa. Possuía um cabelo verde lambido. De pele negra.

— Eu faria uma série de perguntas para ti. — me levantei devagar. Apoiava os braços sob os joelhos. — Só que pelo teu sorriso, dá para ver que isso não vai chegar a nada.

— Não precisa perguntar nada, senhor policial. Algumas coisas serão respondidas durante a luta.

Senti um calafrio correr a espinha. Os pelos ficaram eriçados e a garganta fechou. Olhei para trás. O Slaaf angelical esgueirou o pescoço decepado no hall do prédio. Esticou o tridente no braço reto assim que me achou. A arma entrou com tudo e destruiu todo o cenário. Me forcei a entrar no prédio, onde iria sumir da visão dele. "Será que o Ricardo ficará bem?" A mana espessa estava comigo.

Observei próximo dos elevadores. O rapaz estava lá. Me aguardava.

— Os Slaafs que estão lá fora. Eles são de classe A? — o questionei.

Ele aplaudiu letárgico e sarcástico. — Matou a primeira charada. — Respondeu. Num sonido esgueirou-se curvado. Chegou abaixo do meu peito. Mal tive oportunidade para reagir. Levei um chute no queixo.

A força carregada de mana me fez subir andares. Atravessava os pisos com as costas. Finalmente parei. Rastejava nos destroços para fugir da visão do buraco. "O desgraçado percebeu a falta de regeneração!" Não era fraco. Isso nunca.

Olhei para a cratera. Esperava algo medonho me caçar. Deslizou no concreto tentáculos roxos que pareciam brilhar num cintilar pulsante a cada segundo predeterminado. — Que porra é essa... — O garoto surgiu do buraco. Os tentáculos haviam tornado-se o braço esquerdo.

— Ainda não matou a segunda charada? — me indagou.

— Que você é esquisito? — Ricardo me contaminava com o deboche.

Ele rosnou. Puto. Jogou o braço octópode contra mim. Desviei para o lado. Me escondi atrás do sofá carmesim. Ao achar uma bolinha de tênis babenta não perdi tempo para arremessá-la. Consegui acertar o rosto do garoto. Ficou mais irritado comigo.

— Não fode, porra! — Arrastou os tentáculos pela sala de estar. Destruiu uma televisão de cinquenta e duas polegadas linda. "Admito ter ficado triste ao vê-la se espatifar."

Fugi de costas contra a janela pivotante. O vidro se estraçalhou. Comecei a cair. Parecia que o tempo ao meu redor havia ficado lento, pois analisei a ira do rapaz contra mim.

O anjo esqueleto percebeu a movimentação enquanto ainda me caçava nos escombros. Ao ver meu corpo indo em queda hasteou o tridente. Quis fazer um espeto sanguinário com minha carne. Usei do braço direito, preto, para rebater a arma. A criatura pareceu ficar chocada com a dureza do membro. Estiquei o esquerdo para dentro do prédio e agarrei o concreto com as garras. Me joguei para dentro outra vez.

Comecei a correr. — Ricardo, na escuta? — Liguei o comunicador.

— Tomando chá aí dentro? — Ele berrava entremente aos barulhos de destruição.

— Os Slaafs são classe A. E ele tem uma mana esquisita. Tipo...

— Tipo a nossa. — Ricardo completou. — Dois dos amigos deles estão aqui comigo. — Uma pausa para batalhar. — Eles são Slaafs modificados!

Que porra é essa?

— Que porra é essa!?

— Tu quer aula de teoria agora ou pode esperar a missão acabar? — Outra pausa. — Eles querem matar a gente. Não dá mole! — Um estrondo. O comunicador começou a chiar.

— Ricardo!?

Merda! Tinha de subir as escadas, encontrar o garoto modificado e tirar informações dele. Quando coloquei o pé no primeiro degrau do andar ouvi um som tímido. Olhei para trás. O elevador abria, e outro rapaz saia dele. Vestido de kimono e hakama. Também era negro. Duas tranças desciam na testa, entrelaçadas.

Ele sorriu, e saltou na minha direção. Levei um soco na boca do estômago. Eu cuspi a saliva e o ar. Cai lamuriado sobre os degraus. A mana dele era mais traiçoeira que a do outro. — Você vai morrer aqui, policial.

Deuses de Sangue [VENCEDOR WATTYS 2022]Onde histórias criam vida. Descubra agora