Ela morreu

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A semana seguinte foi... conturbada, para se dizer o mínimo.

Saber quanto tempo havia passado no Inferno, sem a ajuda de um relógio, tornou-se uma tarefa quase impossível de se realizar. Tive que aprender a reconhecer quantas vezes passava pelos mesmos criados nas mesmas partes do castelo, afim de saber que haviam se passado pelo menos três horas se eles voltaram a cuidar daquela área.

Tive que aprender a ler os sinais de impaciência de alguns membros da corte ou os de ansiedade de Salem, depois de ficar muito tempo sem correr. Não me arrependi, apesar de tudo, de ter que aprender a ler as estrelas. Graças a falta de um Sol para iluminar a integridade do submundo, a posição das estrelas em relação as luas era o meu único índice de que os dias estavam passando.

E eu passava todos eles enfurnada dentro da biblioteca, com pelo menos um membro da família Real ao meu lado, conforme eu pesquisava mais sobre o feitiço que Ísis havia colocado em meu parceiro.

Foram intermináveis vezes em que Alex me pediu para sair de uma cadeira, para duelar com ele e gastar a energia ansiosa que estava me prendendo, mas me contive. Continuáveis vezes em que Salem sentou do meu lado, em sua forma lupina, choramingando para que eu passeasse com ele, que eu fizesse algo além de ler e estudar incansavelmente.

A única capaz de quebrar as minhas horas de concentração era Amren, que vinha periodicamente com um prato de comida e me forçava a sair de dentro dos livros e focar em algo externo, por pelo menos uma hora.

A preocupação de todos era tateável, eu praticamente conseguia sentir o gosto de seus olhares na entrada da grande biblioteca. Eles tinham medo. Raiva. Eu sabia exatamente o que estavam sentindo, pois sentia em mim mesma.

Medo de falhar. Medo de perder Amine. Medo de me perder, de ficar louca, de, alguma forma, regredir em qualquer progresso que eu tinha feito nos últimos meses.

Mas a raiva era maior, queimava mais forte e mais quente. A minha raiva era capaz de queimar o gelo da trepidação, queimar qualquer medo ou insegurança que passava pela minha cabeça. Eu não tinha opção de falhar. Eu não iria falhar.

E eu era tão, tão grata pelo apoio deles. Por provarem pra mim, de novo e de novo quanto eu significava para eles. Eu queria expressar essa gratidão, mas eu não era capaz de falar isso. Eu apenas era capaz de provar. 

E mesmo assim, eles me subestimavam. Não da maneira que outros haviam no passado, pensando menos de mim, me vendo como incapaz. Eles estavam cegos de medo e preocupação, e apenas conseguiam enxergar a menininha humana que eu fora uma vez. A menininha humana que sacrificaria todo o seu ser por qualquer pessoa em busca de se provar, em busca de ser aceita em algum lugar.

Eles estavam acostumados com a antiga Karma, aquela que estaria apenas debruçada sobre os livros ou chorando na sua cama. Aquela Karma que não era fraca, mas se permitiu ser fraca pelos outros. A Karma que não faria nada o dia inteiro por se achar incapaz.

Mas ela morreu.

E eu renasci no seu lugar.

Meus amigos poderiam não perceber, mas eu não estava sendo controlada pelas minhas emoções, seria inconsequente da minha parte deixar algo tão inferior a mim me reinar. Havia aprendido isso ainda como mortal, mas nunca havia tido a força de vontade suficiente para por em prática.

Meus amigos não notaram que, se eu fosse a mesma Karma de antes, eu não me levantaria de hora em hora para caminhar pelo palácio. Eu não me esforçaria para aprender a forma como o tempo passa. Nem sequer dirigiria uma palavra a eles.

Meus amigos ainda não tinham reparado na forma como as sombras se inclinavam cada dia mais em minha direção. Como o cheiro da minha magia era algo muito mais vívido agora. Como meus olhos pareciam mais brilhantes e eu estava cada vez mais no conforto da escuridão. Mas não podia culpa-los.

Um amigo lá de baixo...Onde histórias criam vida. Descubra agora