Família de Mentirosos

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Tinha me desacostumado com a luz do Sol, e minhas sombras também.

Tive que piscar várias vezes sob o ardente Sol do Inverno, reconhecendo o cheiro de terra molhada e árvores congeladas. As sombras indicavam que em poucas horas, não teria que me preocupar mais com sua potência.

Sabiamente, Salem havia nos transportado para a fronteira da Floresta, longe da Casa e mais perto da cidade humana. Da minha cidade natal.

Amren se ofereceu para andar comigo atém em casa, mas sorri e afirmei que não precisava. Ela me abraçou com força em resposta. Todos o fizeram.

Fiquei tentada a deixar que andassem comigo, mas resisti. Precisava colocar minha cabeça no lugar.

Então caminhei sozinha até a borda da Floresta, confortada pelo som de neve estalando sob as minhas botas de pelo — um exagero, mas cortesia de Amren. Demorei mais entre as árvores do que gostaria de admitir, brincando com as minhas sombras e absorvendo cada melodia que a Floresta jogava em minha direção.

Me inclinei na familiaridade, no gosto familiar de ser humana e andar pela Floresta em busca de algo para fazer. Em mim, dentro de algum lugar do meu corpo que sempre surgia em horas mais inesperadas, cresceu uma imagem tão vivida quanto a realidade.

Uma pintura nasceu em mim, do vento carregando as notas musicais da floresta por entre as árvores, minhas sombras brincando entre os galhos secos como gatos curiosos. Minhas pegadas estariam frescas, mostrando a terra negra por baixo da neve.

Não resisti a esse sorriso, e inspirei fundo o ar gélido da Floresta. Se eu fosse humana, minhas narinas arderiam ao ponto de achar que sangrariam. Meus dedos estariam tão frios quanto e eu estaria tremendo, mesmo com os agasalhos humanos  pesados que haviam me dado no submundo. Mas eu poderia muito bem estar nua agora, que não sentiria nada.

Uma benção de meu corpo imortal. Uma que com certeza usufruiria mais no decorrer da minha vida. Mas não hoje. Não nessas próximas semanas, pelo menos.

Finalmente, consegui me forçar a sair de entre as árvores e atravessei a fronteira até chegar na rua vazia que levava á entrada da cidade. Segui caminho conforme observava o céu mudar de cor com o começo do pôr do sol.

Meus passos eram silenciosos contra o concreto molhado, mas eu era capaz de ouvir tudo que acontecia na rua e na Floresta. A voz de mães mandando suas crianças voltarem para casa depois de brincarem na rua, pequenos animais se recolhendo para a noite, grupos de amigas rindo conforme aproveitavam o último de do final de semana.

Cheguei em casa antes do crepúsculo começar.

- Cheguei! - foi tudo que eu disse ao entrar, e apenas o silêncio me deu boas vindas.

Não fiquei surpresa. Nem sequer fiquei chateada ao sentir meus músculos pesados, pedindo para que eu dormisse, mesmo que não me fosse necessário. Mas estava com fome também.

Olhei uma vez para as escadas que me levariam ao meu quarto e optei por comer primeiro. Sustância, principalmente no meu novo corpo, era essencial. Precisava suprir meu estoque de magia e energia para o resto da semana, senão entraria em colapso.

Minhas sombras começaram o trabalho enquanto me sentava nos banquinhos da bancada, retirando camada após camada de roupa. Finalmente, quando estava apenas com uma blusa de manga cumprida e meus jeans, um prato de peixe e especiarias estava na minha frente. O cheiro de magia era forte, cortesia das minhas sombras.

Estava na metade do prato quando escutei as chaves da minha mãe entrarem na fechadura da porta. Se eu não estivesse com minha cabeça tão avoada, teria sentido o cheiro de seu perfume cítrico, e o cheiro de seu hidratante de amêndoas quando ela estava na esquina.

Um amigo lá de baixo...Onde histórias criam vida. Descubra agora