O café da manhã era algo sagrado na elegante mansão envolvida pelo que restou de Mata Atlântica no bairro da Graça, em Salvador.
A edificação de dois andares e dois ambientes parecia ter sido construída para ficar oculta no meio das frondosas e tradicionais árvores centenárias que ainda existiam - e resistiam, mesmo com a especulação imobiliária.
A mesma especulação que um dia tentou atingir aquela residência, mas seu dono foi irredutível: jamais sairia dali. A casa pertencia à sua família há tanto tempo que mal se recordava, ao olhar antigas fotos de família, de um momento em que a casa era de outra pessoa. Seu pai viveu ali. Seu avô ajudou a crescer a casa. Seu bisavô, um imigrante espanhol que veio fugido dentro de um navio para fazer fortuna no Brasil, foi quem encontrou naquele terreno o lugar perfeito para construir a casa onde teria sua família.
Estêvão Martinez via na casa uma continuidade da tradição dos seus ancestrais, e o café era parte disso. Mesmo que não tivesse mais o conceito nuclear de "família" - e a culpa era sua, ao fim e ao cabo, ele manteria o costume. Porém, com outras pessoas.
O senhor de idade observava as duas mulheres comendo, cada uma delas um prato que apreciava e em velocidades distintas, com emoções que faziam parte do seu ser. A mulher mais velha tinha poucos anos a menos que ele - uns 65 anos, talvez. Trabalhava na casa há anos, e Estêvão sabia alguma coisa sobre sua vida pessoal - a viuvez, a relação complicada com a única filha, a perda prematura, a chegada da neta. Mesmo com as tragédias pessoais, nada abalava o espírito de Marieta Alves, que sorria de algo que a neta, Sarah, uma jovem de 22, 23 anos, falava.
⁃ Não gostei muito do último capítulo da novela, vó... Ela não devia ter ficado com o noivo...
⁃ Por quê? Sempre achei que era o casal perfeito. Não venha me dizer, Sarinha, que você gostava da menina com o chefe... Ele era sem graça, sem pegada...
Sarah mexia os óculos após deixar o garfo com o pedaço do quiche de camarão na mesa. Ela ajeitava-os não por estarem tortos, e sim de nervosismo.
Estêvão conhecia a moça tempo suficiente para saber que Sarah estava encabulada com o que a avó dizia.
⁃ Eu... Eu gostava... Dos dois juntos, vó... Eram um casal bonito... - ela buscou novamente o garfo e terminou de comer o pedaço de quiche.
⁃ Eram sem graça sim. O homem tinha uma mão mole, meu Deus do céu!
⁃ Vó! - a voz de Sarah, baixa e incerta, sempre trêmula, como se estivesse com medo de fazer algo errado, se elevou; porém, era mais um impulso do que qualquer outra coisa.
Marieta riu, o sorriso aberto de quem conseguiu tirar uma reação sanguínea da própria neta.
O patriarca gostava daquele sorriso. Os dentes brancos perfeitos, os lábios cheios com o batom marrom-escuro, no mesmo tom da boca, a pele negra tinha uma suavidade e delicadeza que parecia porcelana, como se ela não tivesse a idade contida na identidade. Era uma mulher muito bonita e elegante com seu porte altivo e o coque fechado que não a deixava matronal.
Nada em Marieta a fazia matronal.
Era um espírito livre, que sabia exatamente o que fazer com a própria vida, e Estêvão queria ser assim. Na verdade, voltar a ser assim. Na verdade, um dia, lá atrás, há tanto tempo que ele nem sabia definir, ele foi assim.
Se ela, a sua confiável governanta, lhe desse uma oportunidade... Será que ela o faria? Ou ele cometeu tantos erros no passado que nem mesmo a chance de ser feliz no crepúsculo de sua vida ele teria?
⁃ O senhor deseja almoçar algo específico hoje? - a voz de Sarah, agora em sua modulação normal, interrompeu o fio de seus pensamentos.
⁃ Não... Não se preocupe, Sarah. Almoçarei no escritório, tenho uma longa e cansativa reunião com a diretoria e os provadores. Aliás... - bebeu um gole da água com gás que sempre o acompanhava com seu café preto, sem açúcar. - Eu queria muito que você fizesse um teste na M.Bahia, Sarah. Você é gastrônoma, uma excelente cozinheira, contribuiria bem mais na empresa como provadora do que apenas cozinhando aqui.
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Três Desejos
RomansaValentim, Ralf e Stéfano. Três homens de personalidades distintas, e que muitas vezes rivalizam entre si, mas com duas coisas em comum: o mentor dos dois primeiros e pai do terceiro, Estêvão Martinez; e um pedido estranho do patriarca quando este é...