Capítulo 1

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Outono de 2017

Cansada de virar na cama de um lado para o outro, Walkiria bufou sem a menor paciência para lidar com sua confusão mental. Travava uma verdadeira batalha, com aquele vendaval de pensamentos que mais pareciam um atropelamento a 150km por hora. Sentia-se extenuada e mal tinha pregado o olho. O dia ainda não tinha dado o ar de sua graça, mas resolveu pular da cama e tentar fazer alguma coisa útil. Por momentos, esqueceu-se que não estava em casa, e quase tropeçou numa poltrona que Carla insistia em manter numa posição contestável.

--Ai! Eu ainda me livro dessa porcaria. – Pulando numa perna dirigiu-se ao banheiro.

Em menos de 20 minutos, estava pronta para a corrida da madrugada. Por influência de Carla e de outras amigas, seguia o célebre milagre da manhã. Tudo para tentar encontrar alguma luz para a própria vida. Bom, dizer que seguia o milagre da manhã era exagero. Teimosa como só ela sabia ser e descrente de quase tudo, não conseguia fazer nada como as regras ditavam. Fazia o que queria e já estava a ponto de desistir. Afinal, nada mudava. Sua vida continuava linda aos olhos dos outros e vazia para si.

--Bom dia peixinhos! Bom dia plantinhas! Bom dia vida! Vamos lá Walkiria, ânimo para essa corrida quando ainda mais da metade do povo dessa ilha, os normais, dormem. – Olhou-se ao espelho que Carla mantinha no corredor e agradeceu por ter cortado o cabelo. A praticidade era algo que preservava acima de qualquer coisa e ter de lidar com o seu cabelo crespo, rebelde e cheio de personalidade, muitas vezes lhe exauria.

Na rua, apesar da escuridão, já se viam laivos da aurora. Ainda na calçada do prédio de Carla, fez alguns alongamentos, para em seguida iniciar a corrida. Adorava correr com seus headphones, quase sempre tocando músicas velhas, motivo de implicância das amigas. Considerava-se eclética, mas tinha preferência por músicas que lhe tinham marcado a infância, a adolescência, e os primeiros anos de mulher adulta.

Correu pelas artérias da cidade por quase uma hora, concluindo o seu percurso em direção à praia de Santa Maria. Era sempre assim, ou quase sempre, afinal não morava mais na sua cidade favorita. Descendo do calçadão para o areal, agradeceu por não ter quase ninguém por ali. Não estava com a menor disposição de cumprimentar pessoas, muito menos ouvir conversas de circunstância nas primeiras horas do dia. Ultimamente, carregava a fama de intolerante, chata e antissocial. Preferia esse estigma, do que fingir uma constante alegria que, não fazia parte da sua realidade.

Sentada na areia, observava as ondas que iam e vinham e seus pensamentos seguiam o mesmo baile. Fazendo desenhos na areia, tentava ordenar as ideias. Há muito tempo que sabia que a vida que levava, não a satisfazia. Nem de longe. Muitos diriam se tratar de ingratidão, que reclamava de barriga cheia. Talvez fosse instável. Mas quem melhor do que ela para saber o que era melhor para a sua vida? Prestes a completar 30 anos, não era assim que queria estar.

Resolveu mergulhar. Água fria na cabeça e no corpo, sempre ajudava. Mergulhou e nadou para longe. Aquilo sim era uma bênção, morar numa ilha. Disso não abria mão...

Mais um mergulho e ideias contraditórias emergiram. Se nada desse certo, iria embora dali. Afinal, o destino do cabo-verdiano era a emigração. Sua mãe já tinha ido embora. Ela não tinha emigrado para buscar uma vida melhor, bom, de certa forma até tinha sido isso sim. Não tinha partido por razões financeiras, mas tinha ido viver uma história de amor. Sempre havia motivo para partir. Mas ela queria ficar.

Caminhando na praia, observava a faina dos pescadores. Alguns voltavam do mar, outros partiam. Alguns carrancudos, outros sorrindo. Muitos em silêncio, outros em amena cavaqueira. Rostos da mesma vida...

Botes eram arrastados para o mar e a frase na lateral de um deles chamou a sua atenção: same shit, different day.

Uma simples frase de 4 palavras, resumia a sua vida.

Nas brumas do PicoOnde histórias criam vida. Descubra agora