Prólogo - Nascimento

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     O mundo através das vidraças era o inferno adentrando na terra. Alguém havia esvaziado o submundo. E todos os demônios estavam ali.
 
      O céu havia sido tingido na cor do sangue e possuía agora uma espécie de textura aveludada, como se carregado. Suas nuvens pálidas e quase imperceptíveis singravam por uma vastidão carmim. O sol e a lua compartilhavam seus postos no céu, um do lado do outro, ambos negros como carvão e apenas o astro solar com uma mera silhueta branca.
  
    Um vento opressivo adentrou pelas janelas, Aegnath teve a tentação de fechá-las. Algo no cheiro desagradável o fazia desejar se trancar ali até que passasse. Afinal desconfiava levemente do que se tratava.
 
     — Não feche, a intenção desse ataque é justamente causar o medo. Não alimente o demônio além da medida — Disse a figura barbuda que afiava o seu machado. Já tinha ferimentos pelos braços, dos combates anteriores naquele mesmo dia. Os dois antigos servos do fogo e devotos do Templo de Promethéia se encararam, assuntos mal resolvidos matutando na cabeça.
   
     — Já declararam um toque de recolher e todos os cidadãos que o castelo conseguiu comportar estão horrorizados. Há como ter mais medo que isso? — O rapaz respondeu, se afastando da vidraça. Seus olhos verdes faíscaram quando afastou o cabelo ruivo dos olhos.
  
   — Sempre há como gerar mais medo, e a criatura se alimenta do medo. Seja lá onde ela estiver...ela está observando o ataque — Begorn afagou a longa barba, pondo o machado em cima do ombro.
   
     — A criatura em questão é realmente um demônio? Vocês conseguiram... provar isso? — O ruivo era um refugiado ali. Aegnath pouco compreendia sobre os métodos dos caçadores de monstros, os guardiões eram bem discretos.
 
       — Só um demônio pode fazer esse tipo de coisa. Poderia até ser até um ataque normal...se não fosse o céu. Significa que um demônio surgiu, e agora seus servos querem comemorar esse evento — Begorn ergueu a cabeça para o alto quando passou a escutar o repetitivo clangor.
 
     Os sinos da torre principal soaram, e então o rapaz e o homem mais velho saíram pelos corredores já cheios de criaturas perto das janelas. Aegnath, o mais jovem, viu as asas de uma harpia jogadas no chão, o ambiente escuro envolvendo os restos de tal forma que pouco mais que o contorno das penas era visível.
 
      — No solo é pior — Begorn adiantou, e logo quando atravessaram a ponte coberta e emergiram nas ameias do castelo, puderam lançar seus olhos para além das muralhas de pedra e ver a vastidão de criaturas que subia a montanha na direção da fortaleza de Arwend.
  
     Viam orques com olhos vermelhos e brilhantes, esqueletos reanimados, gárgulas de pedra, harpias com longas garras e manticoras com seus rugidos. Os guardiões esmagavam um por um, suas armas de prata cintilando ao refletir a pouca luz do sol negro. Pulsos de energia eram emitidos aos montes, sem qualquer efeito visível.
 
     E as memórias recentes retornavam à mente, quase conseguia ver os dragões caindo dos céus, abatidos por explosões. As espadas de fogo brilhando em noventa e oito mãos e depois se apagando uma por uma, enquanto os servos do Fogo Secreto que protegiam Promethéia caiam um por um.
 
    — Isso me lembra a queda de Promethéia… — Aegnath comentou, enquanto homens morriam e criaturas sangravam na encosta da montanha.
 
    — Outros inimigos...e naquele tempo estávamos despreparados..hoje não — Begorn colocou o enorme pé em um merlão. Se preparou e saltou muralha abaixo, carregando seu machado para dar um golpe estrondoso em uma gárgula que planava, afundando o chão junto dela.
   
     Aegnath testemunhou as criaturas escalando as muralhas e pensou consigo mesmo como Begorn estava errado. Em Promethéiia ele tinha perdido tudo, seus amigos e mestres traídos e massacrados pelo rei e pela Igreja. E ali o povo de Arwend poderia perder tudo também, mesmo com preparação.
 
    " Se formos derrotados nesse lugar aqui...é como se o acontecimento se repetisse..." O ruivo pensou consigo mesmo, e então teve determinação para lutar. Conjurou uma bola de fogo de sua mão e a arremessou, estourando o orque mais próximo.
 
     Desviou de flechas de esqueletos e uma delas passou cortando pela sua bochecha, sendo engolida pela vastidão do céu vermelho. Sacou sua espada do cinto que prendia as vestes negras tremulantes, a lâmina de ferro cintilou como ouro quando as chamas lamberam o metal e imbuiram o golpe que abriu um arco no ar e cortou a cabeça de uma criatura.
 
      Sangue respingou enquanto Aegnath lutava, as criaturas mal conseguiam tocar os merlões e ameias antes de serem derrubadas. Viu uma revoada de gárgulas evitando as muralhas e descendo em rasante direto contra o pátio. Lançou uma torrente de fogo para tentar impedí-las e, antes dos monstros tombarem queimando lá embaixo, uma das criaturas agarrou o braço do ruivo e o lançou para o chão.
   
     Os dois se agarraram um ao outro no processo de queda, levando um ao outro para bem longe da montanha e do castelo, planando poucos metros das escarpas da montanha. Aegnath gravou seus dedos no braço de pedra da gárgula, que rugiu com sua boca escura e tentou furar o oponente com os chifres. Os dois quase na base da montanha, rolaram encosta abaixo até pararem no vilarejo destruído pelo desembarque das criaturas.
   
     — Filho da mãe… — Entre o cheiro acre e as costas arranhadas, Aegnath xingou, rolando para o lado e escapando do abraço da gárgula. O monstro rugiu mais e disparou com uma batida de asas em um avanço repentino, por pouco não separando a cabeça do jovem de seus ombros.
    
     A espada disputou forças com o braço de pedra e perdeu, Aegnath foi empurrado contra a parede cinzenta de uma casa queimada. O soco subsequente errou o ruivo por pouco, explodindo parte da casa logo atrás. O ruivo bateu o botão da arma no meio do abdômen da gárgula e rachou a pele cinzenta. A resposta foi uma cabeçada.
   
      Aegnath tonteou de forma a ser segurado pelo pescoço e impulsionado por um vôo baixo. Suas pernas arrastaram pelo chão enquanto tentavam se firmar, as botas se desgastando por todo o trajeto tortuoso. Enfim cravou seus pés entre uma rocha e a terra e girou, conseguindo bater com a gárgula estrondosamente em uma parede. A gárgula foi jogada para dentro da casa, se arrastando com dificuldade na escuridão entre os destroços.
  
     Respirou fundo e sentiu coisas agarrando as suas pernas e braços, viu esqueletos tatearem pela sua carne emergindo do chão. Se livrou de cada um com pura força bruta, arremessando contra os frágeis casebres. Alguns eram engolidos pelas chamas.
 
      — Tá gostando, gracinha? Tem mais de onde veio isso! — Aegnath provocou, suando e pingando sangue pela testa. Uma vez solto, foi até o buraco por onde o oponente tinha sido jogado.
 
      Teve poucos instantes para pensar quando a gárgula ouviu a provocação, o monstro bateu as asas e se impulsionou com força até o ruivo. Ele girou a postura e pôs a espada na frente do corpo, a lâmina de chamas entrou fundo na rachadura do peito da criatura. Ela grunhiu e arfou uma última vez, antes de sua pele inteira rachar e o corpo se separar em pedaços.
 
     Aegnath emergia atrapalhado das ruínas da casa, sentindo dor em quase todas as suas articulações. Saiu destruindo um esqueleto vivo quando este agarrou seu pé. Olhou ao redor vendo mais e mais criaturas causando morte e ruína por todo o lado.
 
     — O castelo...como 'tá o castelo?-
— Murmurou para si, mas então parou para ver o vilarejo destruído. Escutou algo diferente dos sons de batalha, um choro ritmado acompanhado do som forte.
 
      Parecia uma mistura de um grito longínquo com o quebrar das ondas, o farfalhar das folhas, o cantar dos pássaros e o curso de um rio. Tudo isso único em um único som alto e penetrante. Fez os pelos de sua nuca arrepiarem, mesmo que não entendesse do que era.
 
      — Era de se esperar que surgisse um Cantor de Morrhen depois de uma tragédia dessas… — Uma voz comentava atrás. O ruivo olhou para trás e viu alguns guardiões já chegando, tinham o corpo imundo de sangue de monstros. — Sempre surge um desses quando um banho de sangue ocorre —
 
      Aegnath caminhou na direção do som e revirou detritos até tirar de lá uma mulher já falecida. Os cabelos castanhos imundos de poeira e a pele gelada. Ainda não era a origem do som, então pôs se a revirar mais.
 
    — Como aquela mulher pode estar emitindo uma Canção de Morrhen? Está morta… — Um guardião questionou.
 
    — Não é ela, Fringill...a fonte do poder é outro ser — Begorn respondeu, e todos observaram enquanto o ruivo erguia um bebê sujo de sangue.
 
      A criança emitia a tal "Canção" junto do seu choro, seus olhinhos da cor do âmbar brilhavam. A pele era pálida e os dedinhos se agarravam no braço de seu salvador. Nascido da morte...vindo ao mundo através de um cadáver.
 
     Os guerreiros ainda estavam um pouco atordoados com o acontecido, mas se puseram a ajudar a arrumar o vilarejo. O Sol negro já dava lugar a uma lua comum, enquanto céu lentamente tomava o tom azul escuro característico. O ruivo ficou na praia, embalando o bebê agora silencioso e em sono profundo, as ondas do mar chegavam às suas botas destruídas.
 
     — Faz menos de dois meses que Prometheia caiu, ainda está fresco na sua memória. Não devia ter te chamado… — Begorn começava a dizer. Seus passos tinham sido escutados um pouco antes de sua voz grossa cortar o ar, mas Aegnath não olhou.
 
     — O que é um Cantor de Morrhen? Isso eu não aprendi — Aegnath cortou. Realmente estava tudo fresco, não queria reviver isso.
  
    — Bem...é quando uma pessoa incorpora toda a angústia e energia negativa em uma tragédia mágica. É raro de acontecer, mas gera uma anomalia capaz influenciar poderes da natureza... geralmente são considerados má sorte — O homem respondeu, era mais um guardião do que um servo do fogo. Quando Promethéia caiu, foi como se Begorn estivesse voltando para casa.
 
     — Então o menino é especial… — Aegnath respondeu, erguendo as sombracelhas por um tempo. Tocou a testa dele com o polegar.
 
       — Especial no sentido de ser um amaldiçoado, irmão, esse garoto será marcado até o fim dos tempos por ter nascido junto de um demônio… — Begorn deu um suspiro pesado como a sua voz trovejante.
 
      — As pessoas sempre temem aquilo que não entendem...mesmo que não seja culpa da vítima — Aegnath comentou, distante, fazendo algo como um símbolo na testa do recém nascido.
 
     — O reino e o clero vão pagar pelas escolhas de perseguição deles. Vão precisar de magia para lidar com o que atacou hoje… — Begorn acenou com a cabeça, concordando. Afagou a sua barba.
 
     — Sim, e nós vamos precisar de poderes estranhos se também quisermos resistir… — Aegnath estendeu o bebê. — Mantenha ele por perto, vai ser útil —
Begorn ergueu as sobrancelhas, bastante surpreso. Sua postura bruta ficou chocada ao segurar o pequenino.
 
     — Eu...eu...como espera que logo eu mantenha uma criança? Ainda mais uma criança amaldiçoada? — Begorn questionou, mas o ruivo apenas sorriu.
 
    — Meu bom e velho Begorn...você questiona as suas habilidades. Tem um coração de ouro e é sábio...vai lidar bem com a situação. Apenas prepare o menino pra mim — O ruivo sorriu mais e começou a se distanciar pela praia. Tinha uma esperança renovada. Podiam tentar tudo de novo.
   
     — Eu...eu não tenho como fazer isso! É impossível eu estar preparado para criar uma criança dessas! — O homem gritou, revoltado, e mesmo assim aninhou o menino contra o peito.
 
     Aegnath riu e mirou Begorn uma última vez com a profundeza de seus olhos verdes. Cinzas caiam dos céus depois da fumaça dos casebres se erguer alta o suficiente. A grama era atapetada por um tom gris, mas as areias eram brancas e imaculadas.
 
      — Ora, Begorn, é só uma criança. Você consegue lidar com isso  — E desapareceu ao longe, talvez para sempre.
   
     E a noite engoliu a memória daquela batalha sangrenta.

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