XV - A Diáspora

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Ouvia vozes estranhas para além das trevas, vozes diferentes de qualquer uma que já tivesse escutado. Não pareciam humanos, mas ainda sim eram familiares. Quase um canto do sabiá, quase uma harpa a tocar.

Seus olhos brigaram para abrir e através das pálpebras pesadas viu a imagem de homens e mulheres trajando mantos de folhas. Seus olhos eram de cores variadas e brilhantes e sua estatura era acima da média, acabavam por se assemelhar a faróis. Tentou manter a vista pregada neles, mas então fraquejou novamente e caiu na escuridão.

No meio dela via um par de olhos vermelhos o encarando, com aquele sorriso odioso. A gargalhada acompanhava-o não importava para onde se arrastasse. Lutou contra as sombras e gritou, gritou até que o ar sumisse de seus pulmões, se debateu até que conseguisse se livrar das garras do demônio. Mas não se livrou delas até que despertasse.

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Acordou em um estrado de lã estendido sobre o chão, com almofadas sob os seus pés e seu pescoço. Estava coberto por ataduras de linho branco que pareciam ter sido trocadas recentemente, mas via ao lado outras ataduras manchadas de suor e sangue.

Tentou se erguer e viu dificuldade nisso, acabou apenas conseguindo se sentar. Seus olhos passearam pelo ambiente e percebeu que estava no interior de uma larga tenda, sustentada por pilares de madeira e revestida por seda e lã coloridas. Desenhos de estrelas de cinco pontas e folhas de damasqueiro e pessegueiro tinham sido bordados ali.

De canto de olho conseguiu ver uma mulher saindo de perto do braseiro no centro da tenda e indo para fora dela. Tentou chamá-la, mas ela já estava longe quando sacudiu a mão. Suspirou e ficou encarando as brasas quase apagadas no interior do buraco encimado por grades de ferro.

- O que é esse lugar...?- Grimm começou a perguntar, quando viu entrar na tenda um rosto conhecido. Widelford estava lá, com um manto de folhas douradas e uma bela aljava de couro branco nas costas. No rosto tinha uma expressão grave e altiva, parecendo um sábio de cem anos e ao mesmo tempo um guerreiro no auge.

- Está com o meu povo, Grimm de Feralind, e apenas por isso já poderias se sentir seguro. Acrescento que está com os povos élficos do norte, que cuidou de suas feridas e o deu repouso- Widelford deu um sorriso suave. - Então pode se sentir em paz-

- Não pensei que o veria aqui no fim do mundo- Grimm respondeu, se remexendo no estrado. Já sentia desconforto com as ataduras. - Na realidade, pensei que jamais o veria novamente-

- Nem eu. É triste quando o último dos servos do fogo se entrega aos destinos de um mercenário- O sorriso de Widelford sumia, voltava a seriedade. - Pensei que estaria morto com Florian e com o cavaleiro vermelho-

- Fui eu quem os matei- Grimm intencionalmente quis parecer decidido, mas a voz soou falha, como que com a intenção pela metade.

- Por que os matou?- Widelford olhou nos seus olhos. O garoto pensou que ele pudesse ver através deles e também através da alma.

- Quis limpar com sangue os meus próprios erros. Me aliei a eles e fiz um erro, então os matei para reparar isso- Outra justificativa pela metade. Por que não conseguia mentir nem para si?

- Então por que os pecados continuam sobre seus ombros?- Foi o questionamento astuto que o quebrou. Se realmente fizera isso para matar a culpa, por que a culpa só tinha aumentado?

Grimm ficou em silêncio pelo que pareceu uma era inteira, matutando isso internamente e fitando o braseiro. Não conseguia sentí-lo.

- Já consegue livremente criar e manipular o fogo do jeito que você quer?- O elfo quebrou o silêncio. Grimm negou com a cabeça e Widelford acenou em sinal de entendimento. - E eu entendo o motivo...-

As Crônicas de Terror e Encanto - 𝐈Onde histórias criam vida. Descubra agora