I - Despertar

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      — A manticora é um monstro terrível...espreita entre as sebes nos cemitérios e devora os cadáveres mais recentes. Porém oque ela mais gosta são humanos frescos. Com seu rosto achatado, boca longa recheada de deites afiados, corpo roliço e asas de couro, consegue ser mais perigosa ainda quando abre a boca.. —
   
      — Pensei que a parte mais perigosa fosse...sabe? O rabo com o veneno — A voz de Arabelle respondia, encantada.
   
       E ao lado, Grimm aos poucos se levantava com o gosto amargo da saliva na boca. Tinha dormido e mais uma vez esfregava a mão quente, sabendo que o sonho tinha se repetido. Permaneceu de olhos fechados aninhado contra a pedra quase macia.
 
     — O problema é que a voz da manticora consegue seduzir até o mais forte dos homens. Sua lábia faz tremer até o mais implacável dos cavaleiros...em poucos segundos, um homem antes na vantagem da luta pode despertar já sendo devorado pela besta… — O mestre continuou explicando, sua voz reduzindo lentamente o tom.

     —  E como é possível impedir isso? — Arabelle perguntou, ávida por saber. Grimm escutou o levantar do mestre um pouco longínquo, portanto se deixou tentar cochilar mais.
 
    — Simples...leve um companheiro para a missão — O caminhar quebrava algumas folhas pouco a pouco. O "crack" era constante na sequência de passos, um depois do outro. — ...ele vai se aproximar de você durante o transe...e te dar um choque de realidade —
 
      As mãos agarraram os seus ombros de súbito, forçando-o a olhar para frente junto com um grito para o resto. Grimm abriu os olhos no susto, dando de cara com o rosto barbudo de Begorn.
 
      — Boa piada..boa piada, quase acreditei que você fosse a manticora — Grimm esfregou os olhos com as costas da mão, o garoto bocejou.
 
    — Então pelo menos estava prestando atenção — Begorn bufou, alto e ameaçador, tão grande quanto o coração. Um homem maciço de dois metros de altura, identificado pela hisurta pelagem negra e emaranhada, sua barba chegava ao abdômen. Os olhos escuros espreitavam por baixo das pesadas sobrancelhas.
 
      — Escutei muito bem a parte sobre as manticoras e como elas são perigosas. Só não sei se elas vão ser tão carinhosas assim e só sacudir meus ombros — O rapaz deu um sorriso maroto.
 
     — A manticora vai fazer muito mais com você, seu cabeça oca — Arabelle provocou, cruzando os preços contra o peito reto. — Vai precisar de um aliado muito bom se não quiser morrer contra uma —
 
    — Então só é necessário que o aliado não seja você — Grimm riu ao ver a cara de Arabelle ficando vermelha de raiva.
 
       A pele clara da menina se ruborizou muito facilmente, seus olhos azuis ficaram no meio daquela vermelhidão. Ajeitou os cabelos pretos para tirar as madeixas de perto do nariz arrebitado, longos como eram o vento fazia o favor de fazê-los atrapalhar a carranca quase permanente. No fundo, Grimm achava Arabelle bonita.

      —  Parem de brigar, os dois. Peguem um pouco de água e lenha para o acampamento. Montar um desses é mais útil do que aprender sobre a manticora...sem um acampamento poderiam ser devorados até por lobos.- Begorn se sentou na pedra e os aguardou na clareira.
 
    As duas crianças caminharam pelo bosque de Arwend, pisando no manto de folhas secas se atapetava todo o chão coberto de matéria orgânica. Passaram por muitos pinheiros na trilha pela floresta, ouvindo os insetos voando nos arredores.
 
     — Eu levo os baldes e você leva o resto. Deve ser mais levinho pra você — Grimm comentou, calmo, enquanto enchia os baldes metálicos.
 
   — Só porque eu sou menina? — Arabelle sorriu, sabendo que não era por isso. Apenas provocava.

     — Talvez porque eu te dei um golpe na mão no último treino e deve estar dolorido. Mas se quiser levar mais peso...sou todo a favor — O rapaz se ajoelhou no chão e lavou o rosto no primeiro riacho que encontraram. Viu seu próprio rosto.
 
     Um menino franzino de treze anos com cabelos castanho escuros e bagunçados. Sua pele era de um leve tom bronzeado e seus olhos brilhavam em um âmbar bonito, com o olho esquerdo cortado por uma fina cicatriz. Esfregou os olhos e deixou a sujeira se espalhar pela correnteza.
 
      Encheu os baldes de água e os ergueu com um pouco de dificuldade, ao mesmo tempo via Arabelle recolhendo alguns feixes de galhos secos. O menino olhou ao redor e se deparou com a outra margem do córrego. Lá haviam uma série de lápides parecidas com monólitos de obsidiana, cravadas na terra e cercadas por um anel torto de pedras.
 
    — Você já escutou sobre haver um cemitério aqui? No meio do bosque? — Grimm perguntou, curioso, repousando novamente os baldes cheios e se aproximando da margem.
 
    — Não...nunca. E eu acho que você não deveria se aproximar… — Arabelle o avisou, estreitando os olhos e se indo na direção do acampamento. — Não pode sair da trilha nunca —
 
    Grimm não ouviu. Para falar a verdade apenas ouviu o suave cantar que o chamava, o som doce como uma flauta. Seus pés o guiaram passo a passo para o regato solitário e nem mesmo a água fria o despertou. Conseguia escutar bem de longe as reprimendas de Arabelle, mas se aproximou das lápides de obsidiana até passar mão próximo dela. Quase tocou.
 
     Ou pensou que não tocou, quando enfim despertou como quando uma pessoa enfim emerge de um rio gelado após um longo mergulho. Ofegou e olhou para sua mão direita, empapada de sangue ao tocar nas bordas afiadas da obsidiana. Virou para os lados e paralisou ao notar que o farfalhar nas folhas próximas não eram naturais, lentamente levou os dedos até o cabo da adaga.
 
       Seus olhos buscaram a criatura na escuridão da floresta e viram o monstro cavando terra a cada passada. O corpo roliço ainda semi escondido era carregado por longas patas que terminavam em garras bem maiores que mãos. As asas raspavam nos galhos, imensas demais para ficarem ocultas, podiam carregar até o peso de um touro.
 
    " Mais um pouco e eu estou perdido... não tem saída para isso aqui...eu vou morrer.." Grimm pensou nisso com um medo latente. Seu coração ribombava contra o peito, embora parecesse calmo por fora. Seus dedos fizeram a lâmina começar a cintilar fora do cinto.
 
     Não teve muito tempo de reação. O ar sumiu de seus pulmões quando a folhagem entre as árvores se espalhou repentinamente. O som da corrida da fera e do arrastar das asas foi o guia de Grimm, que já olhou para o lado com a manticora empoleirada em uma sepultura sombria. Ela deu o bote com um silvar crocitante.
 
     Seu ferro foi pouco efetivo. A lâmina teria se enterrado e furado completamente o torso da fera, com ela jogando o peso contra o menino, se não fosse a pele monstruosa. A adaga se torceu facilmente e se tornou inútil, enquanto Grimm sentia seu torso pressionado contra o chão.
 
    As garras tentaram cavar o seu peito, os joelhos e braços protegendo as partes vitais dos golpes de garra ainda brandos. A manticora o olhou, sim, pois o olhar dela era penetrante. Uma enorme cabeça que se ligava ao torso sem pescoço, coberta de pelos castanhos. Mas o rosto parecia uma mera colagem, uma máscara de rosto humano no meio de uma vastidão de cerdas, um rosto belo e feminino pálido como um fantasma.
 
     — Monstro desgraçado… — Grimm chiou, jogando a cabeça para frente enquanto continuava a fazer força. Mas a boca da manticora se abria, liberando novamente aquele som que interceptou os seus sentidos. Seus movimentos se tornaram mais lentos...sua visão ficou nebulosa...sua vontade de lutar desapareceu. Suas costelas reclamavam.
 
     Grimm desistiu lentamente de lutar. Pensou na própria incapacidade. Suas mãos seguraram com pouca firmeza as patas da manticora. Os dedos tentaram afundar na pelagem e aos poucos suas mãos esquentaram quando o suor gelava. De súbito se forçou a inspirar mais uma vez e empurrar a besta, chamas se espalharam de suas palmas rápidas como um incêndio num palheiro.
 
  — O que...? — O garoto rouquejou, confuso, vendo a manticora se debater e recuar para longe dele. O corpo pegava fogo e a cauda com o espinho venenoso se retraía momentos antes de atacar. Grimm afundou mais os dedos no pelo da manticora e a incendiou, o monstro tremeu com seu rosto humano urrando de agonia naquele torso monstruoso.
 
   A manticora cambaleou para trás, andando de um lado para o outro tentando recuperar o espírito. Cavou a terra e se lançou contra Grimm para um bote mortal no momento fugaz em que algo saltava por cima do regato, o machado prateado rodopiou no ar e deixou a fera dividida em duas partes. Sangue escorreu por cima de Grimm.
 
    Grimm sentia seu torso inteiro latejando, encarando Begorn com puro terror no rosto. O homem barbudo se erguia mais de dois metros acima do garoto, temível como um urso.
 
   — Eu não quis deixar a trilha...eu só fui pego no transe da manticora e… — Grimm tentou se explicar, mas Begorn ergueu a mão.
 
     — Perfeitamente compreensível, só recomendo levar prata da próxima vez. Homens mais fortes que você já caíram na tentação da manticora...não é o primeiro e nem o último… — Begorn deixou o machado sobre o ombro e ajudou o menino a se levantar. — Mas o poder da manticora só ludibria o alvo com os desejos do próprio coração —
 
     Grimm desviou o olhar, mirou as lápides de obsidiana e percebeu que não haviam nomes delas. Apenas runas.
 
      — Pensei que encontraria algo relacionado aos meus pais nesse cemitério. Não achei nada em qualquer outro lugar — Grimm olhou para as próprias mãos, quentes e marcadas por uma mancha dourada que se dissipava.

       Begorn tomou a mão do menino e a virou, demonstrou uma expressão preocupada mas sem surpresa. Andou um pouco pelo cemitério e então colocou a mão sobre uma das obsidianas, Grimm o seguiu e viu a pedra escura com um símbolo gravado. Era uma runa com um padrão de um círculo dentro de um triângulo no interior de um círculo maior.
 
    — Aqui está a sua mãe — Begorn falou, sem encarar o aprendiz. Mirou para além das árvores.
 
    — O que significa essa runa? — O menino perguntou, surpreso ao finalmente achar o túmulo. Tocou a pedra gelada, mesmo sentindo dor no tronco inteiro.
 
      — Quanta curiosidade...essa mesma curiosidade quase te matou hoje — Begorn se afastou e se sentou de pernas cruzadas na grama verde. — Essa é a runa de Feralind. Mandei colocar no túmulo dela quando descobri que era a mãe do menino que acolhi. É a runa arcaica do "Renascimento" —

      Grimm olhou para as costas do mestre, que olhava para o regato longe. O menino se deixou ficar de joelhos em frente a sepultura, percebendo que o mestre o acompanharia nessa vigília. Se surpreendeu com o ato...mas tomou-o para si e esperou.
 
    E esperou, até que as chamas nas suas mãos parassem de brilhar. E que qualquer dor no seu peito fosse lavadas por lágrimas, já sem canção de manticora para mantê-lo apático.

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