A casa estava desarrumada e as coisas todas espalhadas por baús, arcas, caixas e sacolas, mas nem tão cedo iriam organizar aquilo. Na verdade, era muito difícil colocarem as coisas nos seus respetivos lugares por várias razões. Ele e os irmãos, porque os irmãos obviamente partilhavam a obrigação, nunca tinham tempo para fazer essa tarefa e, quando davam por si, tinham de se mudar outra vez. Carregavam as bagagens assim como estavam, desmanchadas ou não. Perdiam coisas pelo caminho, mas não se importavam. Era mais confuso guardá-las, depois retirá-las de gavetas e armários. Uma canseira.
Daquela vez eles iriam ficar por mais tempo, determinou. E assim, talvez, desfazer as malas podia ser um dos objetivos principais daquela estadia.
Claro que essa determinação de ficar mais tempo era apenas um desejo, uma vontade, um capricho, um princípio de teimosia. Ele nunca podia definir o tempo que ficavam, em qualquer sítio, porque acontecia sempre tantas coisas que eles não controlavam e que não dependiam inteiramente deles...
Abriu um cofre empoeirado e retirou a sua capa. Sacudiu-a com afinco. Uma nuvem compacta de pó desprendeu-se do tecido e ele tossicou. Fez uma careta, a olhar para a peça de roupa que seria, digamos, antiquada e desajustada, mas sentia-se despido sem a capa e não queria desafiar os deuses logo no primeiro dia. Por isso colocou-a nos ombros e apertou-a junto à base do pescoço, como habitualmente.
Espirrou ruidosamente. Sacudiu uma mão como se assim, com esse gesto prosaico, afastasse o pó do seu nariz sensível. Limpou-o com as costas da mão, limpou a mão à parte de trás das calças. Aquilo foi só um espirro fingido, mas a reação agradou-lhe.
Saiu para o átrio da casa, o único compartimento que estava limpo e num estado decente de habitabilidade. O chão de madeira encerado, os móveis cuidados com óleo de cedro, cortinas leves e transparentes que filtravam a claridade do dia e que iluminavam o lugar de forma natural.
Era um compartimento pequeno e acolhedor que dava diretamente para a rua. Tinha quatro portas. Uma que levava à cozinha e ao espaço de refeições, outra que levava a um corredor que desembocava no escritório, a terceira que pertencia a uma pequena casa de banho de serviço, a quarta que levava à sala, um espaço de convívio, de onde ele tinha vindo. Todas as portas estavam fechadas e ele tratou de fechar aquela que acabava de atravessar. Havia ainda uma escadaria de madeira, ornamentada com um corrimão elegante e escuro, os degraus cobertos por um tapete azul debruado a dourado que se perdia no piso superior onde se situavam os cinco quartos da casa, mais duas casas de banho. Nas paredes estavam pendurados dois quadros com paisagens campestres, pintados à mão e assinados pelo respetivo artista, por debaixo dos quais havia uma mesa, decorada com um vaso de flores frescas, e uma cadeira estofada a amarelo. Junto à porta de entrada havia um bengaleiro e um pequeno armário embutido, onde se guardavam casacos, sapatos, guarda-chuvas. As janelas, estreitas, ladeavam essa porta, sobre cujo lintel estava a campainha que anunciava os visitantes.
Ele pensou que seria uma boa ideia, agora que tinha resgatado a capa do cofre, guardá-la diariamente no roupeiro. Abriu-o e verificou que tinha um cabide que podia utilizar. Numa prateleira baixa, mesmo por cima da sapateira, estavam as mochilas e ele agarrou na sua.
Primeiro dia de aulas, numa escola inteiramente nova e estava nervoso. O estômago fervilhava, sentia-se leve, distraído e incorpóreo. Tinha de ter cuidado para não se transformar, porque isso acontecia quando ele estava naquele estado de ansiedade. Fechou os olhos e repetiu para si mesmo:
– Vai ficar tudo bem. É só o primeiro dia... de outros primeiros dias que já passaste. Não vai ser diferente, ou complicado, ou esquisito. Será só... o primeiro dia.
A sua voz interior acalmava-o e recolocava-o no caminho certo. Ele confiava bastante na sua voz interior. Houve um tempo em que acreditava que era outra criatura que lhe falava, aninhada dentro dele, num qualquer canto entre as costelas, a pele e a alma, mas depois descobriu que era ele próprio e desiludiu-se um pouco, tinha de admitir, porque não queria estar tão sozinho naquela vida que não tinha escolhido. No entanto, ninguém escolhia a sua vida, nesse patamar eram todos iguais, e ele acabava por sentir-se menos isolado.
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Os Irmãos Park
FantasyTrês irmãos adolescentes mudam constantemente de cidade para proteger o seu segredo - eles são dois vampiros e um feiticeiro. Apesar do seu estatuto de criaturas sobrenaturais, o trio sente a necessidade de mostrar que são ainda rapazes normais, igu...