Hoax

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     O que se diz sobre a escravidão? O que se sabe sobre ela? O que se fala sobre ela? O que se pensa sobre ela? Me diga... O que?
     Me acostumei a ouvir o som do batuque do povo Zulu que havia no quarto ao lado. Os intercambistas não vinham só da Ásia, meu bem. Os intercambistas vinham do mundo! E haviam os intercambistas da Escola da Magia Uagadou.
      Os tambores dos alunos intercambistas vindos da África eram outras coisas. E aqui eles não podiam agir como na África, onde eram acostumados a agir com certa liberdade, andando pelos campos da Uganda transfigurados em formas de animais africanos. Aqui não há animais da África. O que restava para eles era o batuque de suas origens. Os batuques e as danças.
      O pátio era um lugar onde eles batucavam e dançavam. Alguns se uniam ali e dançavam junto. Assim como alguns bruxos capoeiristas brasileiros costumavam dançar pelos cantos do pátio, quase fazendo uma luta... Uma luta vinda dos que vieram, também, da África.
     A escola está sem som, sem luz, sem as danças e os batuques. Sem os rostos alegres que Castelobruxo costumava ter. E sinto que estou sentindo mais falta disso por agora do que jamais senti.
    A verdade é que antes eu não prestava atenção. Eu não olhava para eles. Eu não ligava para os batuques e nem para as danças. Apenas colocava-os para dentro de seus quartos no horário de dormir, pensando sobre a próxima atitude que teria para lidar com meus problemas.
     Agora, estou aqui pensando sobre a escravidão. Não apenas a negra que causou tanta destruição na África, ou a da América com seus indígenas... Até na Ásia onde eu morava. Que, apesar de a Tailândia ter resistido bravamente a tentativa dos europeus de comandarem toda a Ásia...
      Em Mahoutokoro, as coisas são diferentes porque há o sangue que rolou de tantas coisas históricas dos nossos povos e dos povos de outros lugares. Tanto que alguns povos se recusam a estudar em Mahoutokoro porque fica no Japão, que invadiu e destruiu a vida de muitos lugares na Ásia.
      Eu falo sobre a escravidão dos corpos e das almas. Porque eu sei que nós somos escravos de algo que está acontecendo. Vivemos acorrentados, presos em uma floresta, machucados por dentro, sendo punidos por não nos comportarmos da forma que eles querem. E talvez digam que não se compara à escravidão, mas... Você sabe o que é a escravidão?
     Os povos da África e da América entregaram povos inimigos na bandeja para receberem presentes e poder vindos dos povos vindos do norte. Tudo por ganância, poder. E hoje mesmo eu vi a Gabriella López de Hoyos Durán ganhando uma condecoração vinda do Goyle por ela entregar as colegas de quarto que planejavam fugir.
      Ela sorria, em frente à escola, por ser condecorada por mostrar que cumpre a nova ordem da escola. Ela é dos Portare Tod? Não! Ela é apenas uma aluna que quer se sentir poderosa, protegida e acalentada para não ser atingida, enquanto atacando os outros. Acredite, você não precisa fazer parte do grupo para fazer parte do grupo.
     Estou aqui no covil dos Purgare. As altas estruturas desse lugar, cada dia mais, me fazem pensar que tudo poderá ruir em cima de nós, acabar com todos nós. São estruturas duras, fortes, fechadas... Não são? Mas não me sinto segura nelas, assim como não me sinto segura abaixo do banheiro. Também não me sinto segura no chão da Amazônia.
     — O silêncio e o comportamento dos nossos inimigos estão nos causando a dor de ver nossos amigos sendo levados... Eles nos mastigam como vacas ruminando. Mas seguimos vigilantes. — Krum está encurvado como sempre.
      — Senhor, o que está se falando por aí é que a nova ordem é de trancar os meios das cartas. — Tatum fala.
     — Sim, já fomos avisados disso. A desculpa é a de que não estão mais seguros os alunos. Está um surto de alunos querendo fugir. A senhorita Gabriella López de Hoyos Durán entregou todas as amigas, o que facilitou para a diretoria enviar mais uma tentativa de fuga. Gregory Goyle está dizendo que isso é influência vinda de fora e que a proibição das cartas, por ora, será o melhor para que as ideias de fuga sejam acalmadas. Ele disse que já avisou as autoridades para haver uma investigação do que está acontecendo. — Krum responde com calma.
      — Senhor, por que não pedimos ajuda de fora? Não teremos mais as nossas cartas com as nossas famílias. Isso não é perigoso? — Hernán Sabanilla, menino do segundo ano, questiona.
     — Nós somos treinados a lidar com a pressão, Hernán. Precisamos mostrar que estamos prontos para lidar com tudo isso. Peço que observem os atos e ajam para minimizar os estragos. Se houver algo além de alunos sendo levados para Rodolfo fazer uma intervenção, agiremos. Eles estão nos observando e nós o estamos observando. E graças à nossa Tee, sabemos os dias em que há as reuniões deles, o que é dito por lá e tudo o que está acontecendo. — Krum continua naquele tom e eu dou aquela olhadela para a Mon, mas ela não se move. — Estão dispensados.
     Sigo para o meu quarto após subir sozinha. Sei que Mon me ligará assim que chegar ao próprio quarto. Eu já disse que me sinto incomodada. Já disse que me sinto estressada, cansada, no limite da loucura...
     — Oi, minha linda... — Mon fala no espelho, calma como sempre.
     — O que você fez para a Tee não contar para ele sobre mim? Ela conta até as reuniões. — Eu falo de uma vez.
     — Calma bebê... — Mon sorri naquele jeito de menina, mas isso não funciona comigo.
     — Mon... — Falo seriamente.
     — Uai, meu amor, depois que você me contou que ela entrou nos Purgare, eu fui e coloquei a maldição Imperius nela. — Mon dá de ombros.
     — Você invadiu o quarto dela? — Começo a rir sem acreditar.
     — Uai, invadi... Tinha que fazer isso é fiz. — Ela volta a dar de ombros.
     — Por que não me disse isso? — Não consigo acreditar.
      — Porque você não perguntou sobre o que eu ia fazer. Você me conhece, linda, eu vou e faço. Não sou o tipo que fica falando, não. — Ela fala como se fosse óbvio.
     — Sei... — Balanço a cabeça, fechando os olhos porque tem que ter muita paciência.
     — Você anda muito bicuda, sabia? É falta de dar, né? Tá faltando uma boa pegada da sua macha, né? — Ela começa a falar naquele tom de safada que ela é.
     — Se fosse isso, eu estava bem... — Suspiro.
     — O que está acontecendo? Conta para mim. — Ela me olha toda atenciosa.
     — Mon, eu quero ir embora. — Assumo.
     — Por que? — Ela continua me olhando.
     — Nem mesmo todo o rigor de Mahoutokoro causava tristeza nos alunos. Esse lugar está pesado. Os alunos da África foram mandados embora ontem mesmo. Tratam eles como trataram os indígenas. Logo, eu serei mandada embora também. Prefiro ir pelas minhas pernas do que ser expulsa. — Suspiro mais uma vez.
     — Entendo, bebê... Você está preocupada pela expulsão? Você é muito nerd... — Ela sorri.
     — Não estou preocupada por isso, Mon! Presta atenção no que eu estou falando! Estão jogando alunos para fora desse lugar com desculpas idiotas. E todos nós sabemos que só restarão os alunos de origem europeia ou ricos demais. Eu sou rica, Mon! Mas não sou dona da Ásia. Eles já me torturaram... Eu quase morri. — Eu entro em desespero.
     — Você está com medo de morrer? — Ele me analisa.
     — Não tenho medo de morrer, Mon. Por muito tempo, até pensei que a morte seria a minha melhor amiga, a salvação para os meus problemas. Eu tenho medo por todos nós. — Suspiro mais uma vez.
     — Não tenha medo por nós, Sam... Somos todos adolescentes comandados por meia dúzia de bruxos. Você não cresceu aqui
Nós estamos acostumados a ver mortes e disputas de adolescentes. Aqui, as brigas sempre foram comuns. Isso te forja a se acostumar com o modus operandi de adolescentes da nossa idade. O problema aqui, é que estão tirando nosso lazer, nossa liberdade. Nós fomos criados em uma floresta com um rio na beira da escola. Nunca faltou liberdade, mesmo que houvessem regras. Só que agora só restam regras com pouca liberdade. Não nascemos para sermos comandados por cordas, Sam. Penso que isso te incomoda porque você se acostumou com a nossa alegria, nosso jeito de ser. Só que estamos tristes e isso te atinge. Você deveria se acalmar e seguir a ordem do nosso líder. — Ela fala e eu suspiro mais uma vez.
     — Você mudou de ideia de entrar nos Portare Tod? — Pergunto.
     — Não mudei, mas a Tee ter mudado me ajudou a ver algumas coisas... — Ela fala calmamente.
     — Mudou o que? — Começo a ficar desconfiada.
     — Meu amor, deixa com a mamãe! A mamãe sabe o que está fazendo. O melhor é você não fazer porque você é gostosinha demais e pode me fazer desconcentrar. — Ela sorri ainda mais.
     — Sobre o que você está falando? — Levanto a sobrancelha.
     — Que eu queria ter comprado doce de leite de Minas em Mamacha e tudo o que vimos foi uma cidade vazia, Sam. Não se retiram centenas de moradores de uma área remota do nada. — Ela faz cara de pensativa.
     — Sim, nós já conversamos sobre isso. O que tem a ver? — Acho que ela está me enrolando.
     — Que eu andei pensando sobre isso. Apenas isso... — Ela dá de ombros.
     — Pensando... E o que pensou? — Observo o jeito dela.
     — Que cidades não são recuadas a toa. Isso só acontece quando precisam usar a cidade como um ponto de ataque. — Ela revira os olhos...
     — Já falamos sobre isso. — Falo como se fosse óbvio.
     — Me diga, meu amor... Por que Goyle, líder dos Portare Tod, iria querer nos levar para nos mostrar uma cidade vazia? — Mon sorri de lado e isso me deixa irritada.
     — Para nos mostrar que estamos encurralados. — Dou de ombros.
     — Uhun.... Mas se ele pretende usar a cidade como um ponto onde bruxos a usarão para chegar à Castelobruxo com mais facilidade... Por que ele nos daria essa informação? — Ela levanta a sobrancelha.
     — Você sabe de algo que eu não sei, né? — Observo-a com atenção.
     — Só andei pensando, amor. — Ela dá de ombros.
     — Não... O que você descobriu invadindo a cabeça da Tee? Ela anda agindo de forma normal, o que engana que ela esteja enfeitiçada com o feitiço que faz ela fazer tudo o que você quiser. Você é boa em feitiços, meu amor. O que você sabe? — Observo-a ainda mais.
     — Sei que ela é burra. Não deveria estar nos Purgare. — Ela começa a rir.
     — Hum... E o que mais? — Continuo.
     — Vice está desconfiada de mim, Sam. Logo eu que estou aqui te ajudando e te amando. Está desconfiada de mim. — Ela fica brava.
     — Não estou... — Suspiro.
     — Está. Eu vou desligar antes que isso vire uma treta daquelas. Você está nervosa com as suas coisas e está descontando e mim. Vou dormir. Beijos. — Ela desliga sem eu ao menos responder.
     Coloco a mão na minha cabeça e fecho os olhos. Sei que ela está me enrolando. Sei que ela sabe de algo que eu não sei. Eu sei e você sabe também... Ela anda tranquila demais.
     Acho que cheguei a um ponto onde eu não sei se quero saber as respostas das perguntas que eu mesma me faço. A verdade é que eu gostaria de estar na minha ilha, quieta, tranquila, bebendo água de côco, comendo peixe fresco, apanhando as frutas do pé. Queria estar vivendo em paz. Estar em harmonia. Isso aqui é um pandemônio de lugar.
     Estou me sentindo cansada, estressada. E parando para pensar aqui... Eu nem me importei sobre a Tee estar nos Portare. Eu nem me importei por ela estar lá e sobre como ela me entregaria. Eu deixei tudo ir acontecendo. Mas eu deveria ter me tocado que ela não me entregar após me ver lá ou me ameaçado deveria ter a ver... Mas se bem que eu pensei que a Mon deveria ter dedo nosso. Pensei que a Mon mandou ela lá. Só que agora sei que não mandou. Se ela não mandou... Por que a Tee foi lá? E o mais importante... O que a Mon está me escondendo?
     Lembra-se sobre a bola de neve de mentiras que eu disse que a Mon estava nos metendo? Você não acha que agora estamos mais ainda em um rolo de algodão? Antes, eram um novelo de lã, um emaranhado embolado, grandioso e grosso. Mas quando é um rolo de algodão, é o algodão enrolado, bem preso, até que você puxe e saia um tufo, não é? Está tudo tão embolado que terei de puxar tufo por tufo para descobrir o que está acontecendo aqui.

Lover (REPOSTAGEM REVISADA E MELHORADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora