Capítulo 14

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RAPHAEL VEIGA

Era tarde quando finalmente fui visitar Marlene. Levei quase duas horas para sair da cama depois que Bruna  foi para o trabalho. E eu a tinha feito sair atrasada também, mas não pude resistir a transar mais uma vez quando a vi naquela pequena saia preta. Ela estava vestida de modo formal e apropriado, com salto plataforma e cabelo preso em cima da cabeça. Minha ereção estava no auge para derrubar a bibliotecária sobre a cama. Ela saiu com a roupa ligeiramente desgrenhada, o cabelo solto e um sorriso de quem foi bem fodida em seu rosto corado. Foi bom olhar para ela. Realmente bom.

Eu ia pagar por uma noite muito extenuante nos exercícios de cardio mais tarde. Treinos no meio da semana eram sempre os mais pesados. Ia ser de matar depois de ontem à noite e com quase nenhum sono. Mas eu não dava a mínima. Eu não me sentia tão bem em muito tempo. Quatro anos, para ser exato.

João estava limpando o chão na sala de jantar quando passei por ele a caminho para ver Marlene. Sem uma bola para jogar na sua direção, era necessária alguma improvisação. O serviço de almoço tinha terminado, mas a
equipe ainda estava guardando as sobras, então peguei três pequenas caixas de leite que um dos rapazes da manutenção de João  estava levantando e gritei:

— Anda logo, ou você vai limpar uma poça de urina de vaca.

João resmungou alguma coisa, mas saiu correndo em direção à outra extremidade do corredor. Eu lancei as duas primeiras minicaixas de leite em
suas mãos. Quando ele estava prestes a pegar a terceira, Nina chamou, distraindo a mim e a João. A terceira caixa de leite passou por suas mãos
abertas e o acertou no ombro, logo antes de cair no chão e explodir em todo lugar.

— Você é um arremessador de merda.

— Melhor jogador do Palmeiras, velho. Melhor jogador do Palmeiras.

O rosto de Nina me avisou que minha tarde não ia ser tão edificante como a minha manhã.

— O que foi, Nina?

— Ela está tendo um dia ruim, Raphael. — Sua voz falhou enquanto ela estendeu a mão e tocou meu antebraço.
As enfermeiras da Marlene eram incríveis. Tinham visto tantas situações de partir o coração com essas pessoas de idade que era muito difícil elas ficarem chocadas.

— Física ou mentalmente?

— Mentalmente. Ela se lembra de algumas coisas sobre Yasmin. Coisas que ela não se lembrava já faz tempo.

...

Marlene estava perturbada e chorando quando entrei em seu quarto.

Sentei-me ao seu lado na cama e peguei a mão dela.

— O que está acontecendo, Marlene? — Eu não sabia qual memória a estava atormentando, e não queria torná-la pior do que precisava ser.

— É a Yasmin.

Nos últimos quatro anos, eu tinha aprendido a falar sobre Yasmin. Não tinha sido fácil no início, mas o tempo entorpeceu a dor que ouvir seu nome
me fazia sentir.

— O que tem a Yasmin?

— Ela me ligou na noite passada. Disse que estava vindo me ver na próxima semana, no meu aniversário. Então a polícia chegou esta manhã.

Olhei para Nina, que balançou a cabeça.

— Alguém fez uma chamada de telefone ontem à noite. — Ela ergueu o relatório de Marlene e folheou as páginas. — A enfermeira da noite escreveu. Nós suspeitamos que foi uma operadora de telemarketing. Talvez a pessoa se chamasse Yasmin . — Marlene começou a soluçar. Nina sussurrou: — Ela está fazendo isso de vez em quando por horas. Divaga sobre a polícia e um corpo no rio.

Bloquear Yasmin  da minha vida diária era uma coisa, mas as lembranças ainda estavam enterradas dentro de mim. Nossas memórias. As boas vencendo as más, mesmo que as más ofuscassem as boas.

— Está tudo bem, Marlene. Vai ficar tudo bem.

Eu estava tranquilizando-a da mesma maneira que eu tinha feito há quatro anos na sala de espera do hospital, a mesma batalha interna me assombrando. Só que agora a demência de Marlene era avançada. Os dias em que ela se lembrava dos detalhes da vida de sua neta eram escassos. Havia menos razão para lhe dizer toda a verdade agora do que havia naquela época.

— Azul. Ela estava tão azul, Raphael.

A lembrança que demorei anos para afastar dos meus pensamentos voltou com tudo. Yasmin  sendo levada para a sala de emergência. No momento em que o acidente no rio aconteceu, ela já estava frágil. Minha
Yasmim tinha desaparecido, substituída por uma viciada em três pacotes de heroína por dia que desaparecia por semanas seguidas. Suas visitas ocasionais eram geralmente para roubar o que nós já não estávamos dispostos a lhe dar.

O grito de Marlene quebrou em um soluço. Passei meus braços em torno dela. A noite em que eles tiraram Yasmin  do East River não era uma noite que eu queria lembrar. Infelizmente, esta foi a nossa segunda viagem em torno da memória da vida de Marlene. Se ao menos as memórias que as pessoas perdem fossem as más...

— Eles não acreditam que ela vá conseguir, Raphael.

— Eu sei. Está tudo bem, Marlene. Está tudo bem.

Pedaços daquela noite vieram à tona.

— Dez graus. Eles disseram que sua temperatura corporal era dez graus.

— Eles estão tentando aquecê-la. Estão fazendo tudo que podem, Marlene.

Eu saí do quarto. Não havia nenhuma razão para piorar as coisas. Como da última vez, eu a consolei até o episódio passar. Não havia motivo para
partir seu coração novamente; se agarrar a todas as coisas ruins só a faria viver no inferno novamente... e provavelmente ela não se lembraria no dia seguinte. O sedativo que a enfermeira deu a Marlene finalmente fez efeito e ela se acalmou, adormecendo.

— Você tem uma dessas injeções para mim? — brinquei quando
Nina entrou para nos verificar.

— Você tem treino hoje?

— Tenho.

Ela sorriu com tristeza.

— Então não, mas, se quiser falar com a Dra. Pallen, ela está fazendo rondas, posso pedir para ela vir e falar com você.

— Obrigado, Nina. Mas eu estou bem. Quanto tempo ela vai ficar sedada?

— Ela provavelmente vai estar inconsciente a maior parte do dia. — Nina colocou a mão no meu ombro enquanto eu estava sentado assistindo Marlene dormir.— Não se preocupe, Raphael. Vamos ficar de olho nela. Te ligaremos se alguma coisa acontecer ou se ela acordar chateada novamente.

— Eu voltarei após o treino desta noite.

— Vou me certificar de que as enfermeiras da noite saibam que ela pode ter um visitante depois do horário.

— Obrigado.

Dizer que acabaram comigo durante o treino era o mínimo. Entre o esforço físico de ficar a noite toda acordado e minha cabeça estar uma verdadeira bagunça do caralho pelo que tinha acontecido com Marlene, não foi nenhuma surpresa que eu fiquei me mexendo por aí como um saco de feno. Em um ponto, a equipe de treino realmente começou a vir facilmente sobre mim, coisa que chateou meu treinador ainda mais do que a minha acomodação.

Após o treino, meu joelho estava inchado como um balão de tanto torcê-lo toda vez que me derrubaram. O fisioterapeuta da equipe me ordenou quinze minutos de molho na banheira de gelo. Como se o passeio de manhã pela estrada da memória não tivesse fodido comigo o suficiente, um molho
em água gelada era exatamente o que eu precisava para me lembrar mais uma vez do corpo gelado de Yasmin sendo retirado do Hudson.

Continua...

𝐎 𝐉𝐨𝐠𝐚𝐝𝐨𝐫,𝐑.𝐕Onde histórias criam vida. Descubra agora