Capítulo 21

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RAPHAEL VEIGA

Após o treino, passei na minha casa e peguei as peças de dama de madeira que eu tinha comprado para o aniversário de Marlene. Não era exatamente as que ela costumava ter, essas eram melhores, mas eram parecidas. No caminho, parei no florista e comprei várias flores coloridas.

— Bom dia para você, velho bastardo. — Eu sorri para João.

Ele franziu a testa e olhou para mim com uma expressão engraçada.

— Por que diabos você está tão feliz, seu merda?

— E não é para eu estar feliz? Sou um cara bonito, tenho um braço que poderia ser usado como arma e você trabalha para mim, não o contrário. A vida é boa pra caralho.

Ele balançou sua cabeça.

— Deve ser contagioso. Eu não tinha visto Marlene em um estado de espírito tão bom em anos.

— Ela tem que estar, faz oitenta e um anos hoje. Você não parecia tão bem quando tinha a idade dela. — João resmungou alguma coisa. — Onde está a aniversariante? Na sala de visitas?

— Eu acho que a visitante a levou de volta para o quarto dela há pouco tempo.

— Visitante?

— A pessoa que esteve aqui há alguns dias está de volta novamente. Ela trouxe um presente para Marlene também.
-João deu de ombros. — Pensei que você sabia. Uma menina bonita com os maiores olhos azuis que eu já vi. A segurança não a teria deixado passar se ela não estivesse na lista aprovada.

O cabelo da minha nuca se arrepiou. Os maiores olhos azuis que eu já vi. Eu corri para o quarto de Marlene. No momento em que cheguei à porta, meu
coração estava batendo como se fosse a primeira semana de treinos e eu tivesse acabado de correr oito quilômetros completos.

Ao ouvir a voz dela, congelei. Yasmin havia se mudado de Deep South para São Paulo quando tinha dez anos, mas sempre manteve um pouco do
sotaque. O jeito que ela falava as palavras era quase lírico, algo que eu sempre amei nela. Eu poderia deitar a cabeça em seu colo por horas, ouvindo-
a balbuciar sobre todas as coisas que ela queria ver algum dia. Mas, neste momento, enquanto eu estava do outro lado da porta, o som era pior do que unhas raspando num quadro negro. Eu deveria ter dado um tempo para conter a raiva fervendo dentro de mim, mas não o fiz. Eu abri a porta. Yasmin estava sentada na cama de Marlene, de costas para mim.

— Que porra você está fazendo aqui?

Ao som da minha voz, sua cabeça virou. Seus naturalmente grandes olhos azuis ficaram ainda mais amplos. Nenhum de nós disse nada. Meu peito queimava. Engolir ácido teria sido menos doloroso do que olhar para ela depois de todos esses anos.

João deve ter me ouvido falar ou sentiu que algo não estava certo,porque apareceu de repente ao meu lado. Ele deu uma olhada no meu rosto, em seguida, em Yasmim, e se espremeu entre mim e a porta para entrar no quarto.

— Ok, aniversariante, é hora da fisioterapia.

Era apenas uma da tarde, e a fisioterapia não seria até as quatro. Felizmente, na maioria dos dias, Marlene não tinha noção do tempo. João manobrou a cadeira de rodas e imediatamente começou a sentá-la na cama.

Ele não estava em má forma, mas eu sabia que não era fácil colocá-la na cadeira. Normalmente, um enfermeiro e um ajudante faziam isso juntos.
Ignorando a autopreservação que estava me mantendo em pé no corredor, caminhei para a cama e levantei Marlene, colocando-a suavemente em sua cadeira. Ela olhou para mim.

— Raphael, eu não ouvi você entrar. Você veio com Yasmin?

Eu respondi com uma mentira no piloto automático, da mesma forma que fazia há anos.

— Viemos em carros separados hoje.

Ela assentiu.

João destravou o freio da cadeira e começou a levá-la em direção à porta.

— Espere! — Ela levantou a mão. — Eu preciso dos meus dentes.

Eu beijei a testa de Marlene.

— Você já está com eles.

Ela fez a checagem de costume, levantando a mão e batendo o dedo no dente da frente. O que havia com aquelas coisas? Ela nunca confiava que eu estava dizendo a verdade sobre os dentes, mas alegremente aceitou as milhares de mentiras com as quais eu a tinha alimentado sobre sua neta durante anos. Às vezes, acreditamos nas coisas não porque sabemos que elas são verdadeiras, mas porque as mentiras são mais fáceis de aceitar.

João acenou para mim enquanto tirou Marlene do quarto, fechando a porta atrás dele. Olhei pela janela por um bom tempo. Havia tanta coisa que eu queria gritar para Yasmin, mas estava tudo preso em minha garganta, obstruindo as palavras.

Eventualmente, foi ela quem falou.

— Como tem passado? — ela perguntou em voz baixa.

Deixei escapar um riso irônico.

— Bem pra caralho. — Esta merda não podia estar acontecendo. Virei-me para encará-la, dando-lhe um olhar mortal. — O que você quer aqui,Yasmim?

— O que você quer dizer? Eu vim ver minha avó.

— Já se passaram cinco anos, porra. Por que agora?

Ela olhou para suas mãos, que se apertavam.

— Eu senti falta dela.

— Mentira. Do que você precisa? Dinheiro? — Eu peguei minha carteira no bolso e puxei um maço de notas, jogando-as sobre a cama. — Vou poupar o trabalho de roubá-la. Pegue. E saia, porra. Estamos bem sem você.

— Você veio vê-la toda semana durante todos esses anos. Eu vi na folha de registro de visitantes.

— Alguém tinha que vir.

Ela olhou para mim. Havia lágrimas em seus olhos, e eu tive que desviar o olhar. Eu estava irritado pra caralho para deixá-la me manipular novamente.

— Era eu que deveria ter estado aqui. Obrigada por cuidar dela para mim.

— Eu não fiz isso por você.

O ar no quarto foi se tornando difícil de respirar. As janelas não abriam e meus pulmões estavam constritos, a pressão no meu peito me fazendo sentir como se ele estivesse prestes a explodir. Eu precisava dar o fora dali.

Sem me preocupar em dizer adeus, deixei as flores e o presente que eu tinha trazido para o aniversário da Marlene na cama e me dirigi para a porta.

Sua voz me parou quando eu alcancei a maçaneta. Não me virei quando ela falou.

— Estou sóbria há onze meses.

— Boa sorte para você, Yasmin.

E nunca olhei para trás.

Continua...

𝐎 𝐉𝐨𝐠𝐚𝐝𝐨𝐫,𝐑.𝐕Onde histórias criam vida. Descubra agora