Olho para o tablet nas minhas mãos, passeando pelas letras com os olhos, mas a realidade é que estruturar um projeto nesse momento é meio complicado. Eu já estive pior, já passei pelo que chamam de "fase difícil", mas nunca alcancei a fácil. A verdade é que eu estou sempre em um meio termo entre uma quase felicidade e o fundo do poço.
Estive fugindo desse presente desde que Swanson entregou nas minhas mãos, a semana foi complicada, porque eu evitei refletir sobre. Agora, na minha folga, sou obrigado a dar algum parecer inicial, pelo menos mostrar interesse.
O cigarro está queimando, enquanto eu penso. Bandit está sentada no chão da sala pintando as unhas, posso vê-la através do vidro da porta da sala, logo vai ser a minha vez, como sempre. Ela só está esperando eu terminar, ela sempre faz isso. Já é quase um ritual.
Tento me concentrar, afinal não é ruim, é algo que eu amo, então por que é tão difícil assim? Talvez seja culpa daquelas fichas, daquele rosto. Não consegui parar de fumar depois disso e estou me controlando pra não começar a comer compulsivamente, só pra aliviar a tensão.
Eu estou bem e seguro. A voz dentro da minha cabeça repete como um mantra.
É só um mini-doc, mas vai ser importante pra minha carreira. Carreira. Essa palavra é engraçada, eu não costumava pensar nela - pode ser um bom sinal.
Nós vamos analisar a ascensão e a queda do Rock, depois fazer um panorama do mercado atual para o gênero, dando ênfase nas bandas que representam a resistência desse tipo de música atualmente.
Seria lindo, se eu não estivesse na ponta do precipício.
- Pai, já terminou? - ela questiona, enfiando a cabeça por uma brecha da porta e eu desperto.
- Não, mas vai ficar pra amanhã - respondo, me espreguiçando e tentando colocar as partes do meu corpo dormentes de volta ao seu funcionamento usual.
Hoje à tarde nós vamos para um pequeno evento, lá nós vamos assistir algumas bandas da cena atual e pensar em possibilidades; é uma forma de desbloquear a criatividade. É claro que eu vou levar ajuda especializada, minha assistente Bandit Way.
- Mas primeiro - ela ri sacudindo o vidro com esmalte preto e eu deixo o ar escapar pelas narinas, meio impaciente.
Ela nunca me deixa sair ileso, hoje não seria diferente. A verdade é que a nossa convivência é ótima e a melhor coisa que me aconteceu foi o tempo, porque nós nos tornamos melhores amigos.
Não demora muito para que as minhas unhas estejam prontas, porque ela é expert nisso. Quando estamos quase finalizando, ouvimos passos se aproximando. Logo nós somos surpreendidos por uma visita frequente.
- Sabia que ia ser assim - ele cruza os braços e nos observa, rindo da cena. - Vocês marcam comigo e estão fazendo as unhas? - Evan sacode a cabeça com desaprovação.
É engraçado porque sempre acontece, eu nem sei como ele ainda não desistiu de sair conosco, mas pelo menos eu sou rápido, visto qualquer coisa para sair, já saí da fase de pensar em detalhes do que visto, eu só quero estar confortável.
A parte mais chata é esperar uma filha adolescente ficar pronta. Ela sempre demora tanto e quer tirar mil fotos quando chega aos lugares, fotos completamente inúteis que ela não vai postar em nenhuma rede social, nem vão fazer parte de um álbum físico, porque isso nem existe mais.
Evan é uma espécie de melhor amigo, que já foi um quase namorado. Ele trabalha com coisas que não tem nenhuma afinidade com arte, o que é engraçado, porque eu sempre me relacionei com pessoas que lidam com isso em todas as suas variações. A parte boa é ter alguém pra me ajudar com o imposto de renda.
Nós nos sentamos na varanda pra aguardar a princesa e eu pego o primeiro cigarro do segundo maço do dia. Estamos frente a frente e ele me lança um daqueles olhares de reprovação, sacudindo a cabeça e eu dou de ombros. Evan é daqueles caras que não perdem um dia de academia, não fumam, se alimentam de forma saudável e usam roupas claras.
- Pensei que você tinha parado - ele diz baixo, olhando algo no celular.
- Parei, enquanto eu dormia - rio baixo e recebo mais uma careta reprovadora.
- Espero que você não invente de morrer cedo, você tem uma filha pra cuidar.
- A mãe dela pode dar um jeito, você sabe que só os bons morrem cedo, né? - nós rimos juntos.
É claro que minha rixa com Lindsey se dissolveu há muito tempo, por mais que ela ainda faça piadas por causa da traição e isso já tenha se tornado assunto nos domingos em família, para o meu constrangimento. Acho que a terapeuta conseguiu consertar a cabeça dela, pelo menos uma parte.
- É sério, Gerard, eu me preocupo com você.
- Own, isso é fofo - digo dando um tapinha no ombro dele. - Quando eu partir desse mundo, você fica no meu lugar, ok? A Bandit já te ama mesmo, assim ela não vai sentir a minha falta.
- Vamos - a voz dela surge do nada, pela segunda vez no dia.
- Vamos, porque eu não aguento mais ouvir seu pai dizendo merda - Evan se levanta, colocando a carteira e o celular de volta no bolso.
Bandit faz uma cara de choque e cobre os lábios. Eu me levanto, a empurrando em direção a porta da sala.
- Ele é adulto e pode falar como quiser - justifico, ao mesmo que nos retiramos.
- Eu sou quase adulta e você tirou meu celular por dois dias só porque eu mandei uma pessoa se foder...
- Bandit! - Eu a interrompo, ligando o carro. Os dois estão rindo agora. - Dezesseis anos não tá nem perto de ser adulto.
- Eu tenho idade pra dirigir, mas não pra xingar as pessoas?!
- Nisso ela tem razão - Evan se pronuncia e eu suspiro, desistindo da discussão. A parte boa, além do imposto de renda, é que ele me ajuda a me distrair.
Quando nós chegamos ao local, depois de muita dificuldade para estacionar, encontramos um espaço que é praticamente um galpão gigante, eu ainda não havia vindo aqui, por mais que seja parte do meu trabalho, acabo deixando para os mais jovens e ficando só com os lugares já legitimados pela maior parte da crítica especializada. É interessante sair a campo assim, já fazia muito tempo que não me aventurava desta maneira.
- Não esqueçam que isso é trabalho - digo segurando a mão de Bandit para que ela não se perca de mim, o que ela odeia, obviamente.
- Qual vai ser o meu pagamento? - sinto um pouco de malícia na voz de Evan e minha própria filha ri disso, ela percebe tudo que acontece ao redor, às vezes eu acho que estou olhando para Linds.
A garota, em toda sua petulância, pega o celular e depois me cutuca, dizendo discretamente para olhar o meu. Quando abro as mensagens, vejo o que ela enviou.
"Friendzone". Eu quase me engasgo com a saliva, enquanto fecho a janela para que ele não veja.
Tudo que eu posso fazer é olhar para ela, como uma advertência. Com certeza vamos falar sobre esse assunto quando chegarmos em casa, mas, por enquanto, eu só posso manter a postura e focar no que vim fazer aqui. Mas o que era mesmo?
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Radioactive
FanfictionTento me afastar, antes que me veja envolto em sua armadilha de novo, mas a minha alma é receptiva, por mais que meu cérebro me alerte para o perigo iminente, até que ele se concretiza e me faz rastejar mais uma vez. [Sequência de Poison]