I - O problema

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Desejar "bom dia" para tantas pessoas todos os dias é a parte mais desagradável do trabalho presencial, mas eu nem posso reclamar, porque finalmente eu tenho algum reconhecimento dentro da profissão, além de trabalhar com as coisas que eu mais gosto.

Trabalhar em um complexo de estúdios pode ser bem divertido e o que me deixa mais satisfeito com esse tipo de emprego é a falta de uma rotina fixa, eu gosto de saber que daqui a seis meses nossas agendas vão estar completamente diferentes, é bom e me faz sentir desafiado.

Caminho pelo espaço que parece mais um grande retângulo de cimento, apertando a chave do carro entre os dedos, o calor incomoda um pouco, por isso agora eu só uso esses shorts curtos, que, é claro, se tornaram alvos das piadas de Bandit.

Minha filha tem esse sarcasmo inato e um humor ácido, igual à mãe dela, que, se não tivesse sido uma adolescente esquisita, teria sido uma grande praticante de bullying.

Agora eu também tenho amigos, ou pelo menos colegas, o que já é muita coisa pra uma pessoa que abandonou a própria vida por um tempo.

Depois da mudança as coisas se tornaram complicadas e eu não queria colocar os pés na rua por um bom tempo, como se a vida tivesse perdido todo sentido. Levou mais de um ano pra conseguir pensar com mais clareza, porque no início tudo que eu fazia era cumprir ordens e agir da maneira que facilitasse minha sobrevivência sem questionar.

A parte mais desafiadora, com toda certeza, foi deixar de ser um simples assistente de roteiro para me tornar um jornalista de verdade. Agora as coisas que eu faço e falo tem certa relevância, além de que assinar trabalhos é minha responsabilidade e vai direto para minha conta, então é preciso ter cuidado. Muito cuidado.

Agora eu me reúno com uma quantidade absurda de pessoas e recebo uma cópia do relatório dos nossos estagiários de produção. Eles se desdobram de todas as maneiras em busca dos novos nomes da música, são eles que nos ajudam a ter uma variedade de talentos e nós selecionamos quem merece impulsionamento.

Depois que a internet virou a maior ferramenta midiática de todos os tempos, nós precisamos estar sempre atentos às tendências e isso nem sempre tem a ver com qualidade musical, também é um trabalho pensado boa parte do tempo em parceria com as produtoras musicais e plataformas de streaming.

Então é por isso que eu estou segurando uma pasta e analisando as fichas impressas. Nós escutamos as músicas que achamos interessantes e votamos sobre quem será o assunto das próximas reportagens. Nós já pensamos em como nos livrar desse costume, mas analisar listas impressas, em vez de em uma tela, é bom para o nosso processo, pelo menos nisso, meu chefe concorda com isso.

- Você pode me passar os número desse de novo? - Swanson pediu para a jovem ao seu lado. É uma garota de, no máximo uns vinte e dois anos, e parece meio assustada, mas isso é normal no começo. Fico imaginando Bandit daqui a alguns anos em seu primeiro emprego e sorrio com a ideia.

No final das contas, nós criamos um tipo de mood board gigante com várias indicações, entre os que já estão bombando nas redes sociais, mas ainda não são consagrados, e os que ninguém nem ouviu falar, assim nós podemos transitar em um público com pessoas mais variadas.

Estou observando atentamente os nomes ali, até que uma ficha chama minha atenção. Não consigo descrever como sinto nesse exato momento, porque minhas mãos estão tremendo um pouco e meu coração está disparado. Ninguém pode perceber, então eu escondo a folha dentro da minha pasta, assim ninguém vai cogitar isso de novo, não hoje pelo menos.

No meio das recomendações, um nome vem me incomodando há meses. Eu sempre tento deixar de lado, exaltar outros, distrair a equipe, mas esse mesmo nome sempre volta. Parece que uma música dele viralizou no TikTok, ou qualquer merda assim, mas isso não me interessa.

- Me deixa ver esse que está na sua mão, Gerard - me movo rápido para que Leslie Swanson não perceba meu pequeno lapso. - Sabrina Hayes. Eu quero ouvir o maior sucesso dela, Simmons! - Ele ordena e é atendido prontamente.

Depois de alguns momentos apenas escutando, Swanson bufa impaciente, ele não parece satisfeito e uma ruga aparece no meio da sua testa.

- Não acho bom o suficiente pra uma reportagem completa, não sei. Me ajuda, Gerard. - Ele pede, como se realmente precisasse, como se ele não tomasse todas as decisões finais sozinho.

- Eu gostei dessa - dou de ombros, mas a verdade é que eu ainda estou me sentindo distante, fora de órbita. Seguro o copo de papel entre meus dedos escorregadios, tentando não pensar muito.

Ele gira a própria cadeira e se vira para outra pessoa.

- O que você achou? E você? - ele recebe várias respostas diferentes, mas eu não presto atenção nelas, acho que minha bateria já acabou por hoje.

No final da reunião, enquanto todos se retiram, Swanson vem em minha direção. Eu não posso dizer que gosto ou desgosto dele, ele é aquele tipo de pessoa que está ali e você sabe que precisa conviver, não há muitas opção.

- Você estava disperso - pontua.

- Eu sinto muito por isso, Leslie.

- Problemas com seu companheiro? - o questionamento quase me faz rir. "Companheiro", quem usa essa palavra? A mão dele esquentando meu ombro em um gesto que pretende ser amigável me incomoda, faz com que eu me sinta preso.

Leslie Swanson acha que eu não tenho a plena noção de que ele é a maior bicha daquele complexo de estúdios, apesar de ser casado e ter dois filhos adolescentes. A mulher dele é a maior consumidora de Xanax de toda a América. A conversinha para tentar se enturmar com o grupo LGBT só me faz querer rir. Tentando forçar intimidade com os gays assumidos, enquanto sua mulher se enche de Alprazolan, é bem engraçado.

- Eu não tenho companheiro ou namorado, nem nada disso - dou de ombros. - Na verdade eu só estou cansado. Minha filha passou a semana inteira comigo, ela sempre foge pra minha casa quando a mãe fica chata demais. - Tento soar natural e ele sorri.

- Bom, seja qual for o motivo dessa queda de energia, eu tenho um presente pra você que vai melhorar seu humor.

Parecer simpático e empolgado é difícil, mas me esforço ao máximo, então ele vai me deixar em paz. Esse "presente" é mais trabalho e eu tenho certeza disso. De qualquer forma, agradeço a ele, como se me sentisse lisonjeado por isso, assim ele pode me liberar de uma vez e me deixar voltar pra casa.

Sozinho.

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