Na fazenda Barton

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De volta aqui, em 10 dias!!!
Pois bem, pessoal, agora vamos ver um pouco dos eventos do filme, mas de formas que não ocorreram lá!! Aviso de GATILHO (automutilação leve, crise de pânico e flashbacks de maus-tratos infantis)!!
Capítulo levemente dark e angst, com toques fofos para aliviar porque ninguém é de ferro. Tomara que gostem!



    Natasha cuidou de Lucy e brincou com Lila e Cooper enquanto os demais tomavam banho; estar ali, com as crianças,  a ajudava a ter certeza de que as visões causadas pela garota Maximoff eram apenas lembranças e fantasmas. Ela estava livre. Lucy estava a salvo e muito longe das garras da Sala Vermelha, protegida por uma família de Vingadores. Tinham uma família. Estavam a salvo. Laura se aproximou da amiga e tocou seu ombro com cuidado, sem deixar de perceber o modo como a espiã enrijeceu antes de olhar para si, vestindo uma fachada alegre, embora seus olhos estivessem opacos e algo ausentes.
    — Laura! – Levantando-se, Romanoff sorriu e fez carinho na barriga de cinco meses da amiga. – Como está a pequena Nat?
    – Ah... – Laura deu um sorrisinho amarelo. – Vai ser... Nathaniel.
    Natasha fechou a cara numa falsa careta e se abaixou, falando com o bebê:
    — Traidor. – As duas riram, e isso pareceu abrandar um pouco o peso sobre o olhar da assassina. Abrandar. A sombra ainda estava lá.
    Laura observou como a equipe voltara: quebrados, exaustos, derrotados não por um inimigo externo, mas por seus próprios demônios... E Clint, o único inteiro nisso tudo, responsável por manter junta uma equipe prestes a se esfacelar. Uau... As coisas haviam ficado muito feias, e era angustiante imaginar o quanto. Infelizmente, tudo o que podia fazer era oferecer um porto seguro, não apenas a Clint — embora principalmente a ele — mas a todos. Com ênfase na assassina soviética que era madrinha de seus três filhos, e que parecia estar apenas parcialmente presente. A mulher Barton queria tanto abraçar a amiga e dizer-lhe que tudo ficaria bem... Mas não era o momento, então apenas segurou a mão de Romanoff com carinho, e sugeriu:
    — Deixe eu cuidar da Lucy, e você vai tomar um banho. Vou colocar ela e a Lila na banheira, juntas, e você... Descansa, tira a poeira e graxa de você e se coloca em ordem enquanto isso. Pode ser?
    Natasha olhou primeiro para a filha, esperando para saber se a garotinha estaria bem com esse arranjo, e a pequena assentiu:
    — Eu tô bem, Mama. Quero tomar banho com a Lila, a gente brinca junto.
    A russa deu um esgar cansado e se levantou; virando para Laura, comentou baixinho:
    — Pré-adolescência é assustadora: num minuto eles agem como quase adultos, e no minuto seguinte querem brincar na banheira.
    — O Clint nunca saiu dessa etapa, então.
    Natasha deu um sorrisinho forçado e encolheu os ombros, concordando; com um beijo na testa de Lucy, levantou-se e subiu para o banheiro: sua pele estava grudando e fedia a óleo, graxa e suor. Seu cabelo se grudava à cabeça, ardendo e coçando, e as memórias reavivadas por Wanda... Ela ainda estava em choque, e sabia. A falta de reações era um mecanismo de fachada... E quando fechou e trancou a porta do banheiro, a tempestade veio...
    A russa deslizou para o chão, segurando a cabeça e murmurando para si mesma:
    — Foi só um pesadelo.... só um pesadelo... Você não está mais lá. Você não está mais lá...
    Mas o estrago já havia sido feito: ela sentia seus condicionamentos se reativando, e seu coração disparava ante a necessidade de punir a si mesma. Punir a si mesma por falhar. Por ser fraca. Por errar em campo... Por ter deixado toda a sua equipe à mercê de Wanda por um erro idiota!
    Ela alcançou o canivete atado a sua coxa... Abriu a lâmina... Sua mão tremeu: não devia. Não podia. Por algum motivo que não se recordava agora, não devia se automutilar... Mas ela havia falhado, e falhado gravemente. Se não se punisse... Erraria de novo! E dessa vez alguém poderia morrer, de fato! Apenas alguns cortes... Fazia anos que não os usava, talvez fosse isso que a deixara mole! Não, ela não tinha mais vício em autopunição... Era apenas um corte... Encostou a lâmina à pele macia do interior do braço e...
    NÃO! Ela não era mais essa Natasha!!! Não estava mais na SV!!! Não era mais a Natasha que se cortava!! Havia prometido a Clint!!!
    Sua mão apertava com força o cabo da faca, e a ponta deslizou acidentalmente contra sua pele, abrindo um corte mais profundo do que pretendia... A dor irradiou por seu antebraço como um farol de lucidez, e ela se apercebeu do que fazia, arremessando longe a lâmina!
    — DER'MO!!!
    A dor não fez dasaparecer os flashbacks, mas ao menos a ancorou ao presente, e a espiã sentiu a familiar tentação. Apenas mais um... Apenas para se regular... Não... Não, não podia voltar a fazer isso. Ela prometera a Clint... Prometera a si mesma... E ainda assim, a dor penetrava em seus nervos trazendo alívio através do fluxo de endorfinas.
    "Você terá de lutar de novo em breve" censurou a si mesma, e isso a despertou do impulso. Não podia correr o risco de romper um tendão, logo agora. Tinha de segurar o impulso pelo bem do time. Pelo bem da filha. Já falhara demais hoje, para se arriscar a falhar de novo.
    Os flashbacks se seguiam dentro de sua cabeça, cada um trazendo consigo as sensações físicas... Ela se retorcia, sentindo-se imobilizada, agarrada, tocada, ferida... Todas aquelas mãos sobre si, o aperto das correntes, o ardor do vidro, o cheiro de corpos, de pólvora, de sangue e fluídos humanos... Ela se ajoelhou junto ao vaso e vomitou todo o conteúdo de seu estômago, as imagens de suas vítimas e de seus algozes gravada a fogo em suas retinas... E acima de todos, a imagem de Lucy... O corpo da menina caído, um furo na testa, sangue escorrendo, os olhos vazios...
    — Não estou mais na SV. Não estou mais na SV. Não estou mais na SV... – Ela repetia freneticamente enquanto enterrava os dedos nos cabelos, hiperventilando. Foque na dor... foque na dor. Isso é real, os pesadelos não.
    Enojada e sufocada pelas memórias e sensações, Natasha começou a se despir com gestos quase desesperados, arrancando o traje como se este fosse feito de figueira cáustica, a sensação do tecido imundo desgrudando da pele ao mesmo tempo um alívio e mais um estímulo de asco, com o som de vácuo úmido do pano encharcado de sangue e óleo de motor descolando... Um som parecido ao de seus órgãos sendo remexidos e alterados dentro dela, na maldita mesa...
    Furiosa consigo mesmo, Natasha se deu um tapa no rosto, com toda a força. FIQUE NO PRESENTE, MERDA!! NÃO ESTAVA MAIS NA SALA VERMELHA!!
    Ela se enfiou sob a água mais quente que sua pele podia aguentar: doeu, mas a dor era bem-vinda. Ao menos a dor do presente. Sua pele avermelhou e ardeu, e ela se esfregou até arrancar sangue, como se a esponja pudesse arrancar não apenas a sujeira, mas as memórias imundas. E quando terminou de se limpar, mudou a temperatura do chuveiro e se forçou a ficar embaixo da água gelada, mesmo que a pele já machucada e sensibilizada doesse com o frio. Seus dentes batiam, mas ela apenas respirou e ficou imóvel, focando na sensação do frio penetrando seus poros... Era como uma meditação... Seu companheiro de infância a abraçou como a neve o fazia, sequestrando seus nervos, puxando-a para o momento, encarregando seu corpo de focar por completo em se regular a fim de controlar a perda de calor. Por longos minutos ela apenas se deixou ser castigada e acolhida pelo frio, até sentir-se limpa no corpo e focada na mente. Lavou uma última vez o ferimento no braço, e saiu. Frio sempre ajudava...
    Estava pressionando o corte no braço, para estancar o sangue, quando ouviu Steve bater à porta... Merda. Com falsa neutralidade, avisou:
    — Estou saindo, Steve!
    — Nat, não me enrola. Senti o cheiro de sangue.
    A voz dele soou grave e baixa, sem deixar mais alguém ouvir. A espiã suspirou e destrancou a porta, ainda pressionando o braço com gaze.
    — Nat... O que você fez?
    — Eu não ia fazer. Minha mão tremeu e... Cortei sem querer; foi uma crise de pânico. Está tudo bem, foi um arranhão.
    Steve franziu o cenho e balançou a cabeça, puxando-a para si. Não podia censurá-la... Não depois de ver o que a garota Maximoff podia fazer. Se ele estivera em choque por algumas horas, demorara a voltar ao presente... Não imaginava o que ela teria revivido em sua mente.
    — Você está aqui, Steve?  — Natasha indagou ao percebê-lo devanear, segurando sua mão para o ajudar a ancorar.
    — Estou. Só... – Rogers suspirou. – A garota nos derrubou feio.
    – Quer falar sobre o que viu?
    – De repente eu estava de volta na guerra. O trem, meus amigos... Então a guerra tinha acabado e eu tinha que seguir a vida, e você e a Lucy não estavam ali... – ele se sentou, segurando o braço de Natasha e começando a desinfetar com o material do kit médico que Barton tinha em cada banheiro. – No segundo seguinte, eu estava no presente, e toda a minha vida tinha ficado para trás, de novo. Basicamente, o dia que acordei do gelo. Mas de novo, vocês... Não existiam. – Ele suspirou pesadamente. – Foi bem pior do que acordar do gelo.
    Os dois ficaram em silêncio por longos minutos, antes que Natasha perguntasse:
    — Como você está, com isso?
    Steve deu um sorriso forçado:
    — É... difícil perder de novo a vida que tive. Mas isso também me deixou bem clara uma coisa: — ele olhou para Romanoff, e seu sorriso se tornou genuíno. — eu não trocaria o que tenho hoje. Passaria por tudo de novo para estar aqui, com você. – e com um sorrisinho – vocês são tudo para mim.
    Natasha balançou a cabeça e abraçou o noivo, querendo confortá-lo e deixar claro que estava ali, com ele. Que ele não estava e não mais ficaria sozinho.
    — Estou aqui para você, Tevie.
    — E eu pra você, Tash. – Ele beijou sua testa. – posso perguntar algo muito pessoal? Você pode não responder.
    Encolhendo os ombros, ela respondeu à pergunta ainda não proferida:
    — Eu me punia, quando saí da SV, replicando a "disciplina" que conhecia. Privação alimentar, frio, calor, treino excessivo... e quando não podia fazer nada disso sem ferrar com meu desempenho, eu... me cortava. Tinha transtorno alimentar, era... eu era uma bagunça. — ela respirou fundo — por uns momentos... tudo voltou. Como se eu ainda estivesse lá. Eu estava aqui, mas tinha falhado, e... o condicionamento foi me punir pela falha. – seus olhos estavam irritados e levemente vermelhos.
    — Você não falhou.
    — Deixei uma criança de 18 anos me pegar de surpresa. Você podia ter morrido. A Lucy podia ter morrido. – O tom de Natasha era seco, tenso.
    — Eu também perdi para a Maximoff. Mereço ser privado de alimentação ou machucado, por isso?
    — Você não foi feito para ser um assassino de elite.
    — Se eu fosse, estaria tudo bem? – ele decidiu apelar. – Clint é um assassino de elite: ele merecia punição, quando Loki entrou em sua mente? Ou deveria se cortar, se Wanda houvesse conseguido atingi-lo?
    Natasha revirou os olhos:
    — Você apela.
    — Aprendi com a melhor. – trocaram um beijo suave e demorado, um gesto de puro afeto e companheirismo, e Steve segurou o antebraço enfaixado da noiva entre as duas mãos, beijando seus dedos. — se tiver flashbacks de novo, me chame. Não lide sozinha, por favor.
    — Te digo o mesmo, Steve. Estou aqui. Não fique bancando o herói e aguentando sozinho, como sei que faz – ela acariciou seu rosto – desculpe. Por me deixar afetar desse modo.
    – Você pega muito pesado consigo mesma, Nat...
   — Achei que esse era o seu trabalho. – Ela lhe lançou uma piscadinha, e Steve entendeu a mensagem: Nat estava bem. Abalada, mas bem. Ela era dura, e não ia ser uma crise a quebrá-la. Tudo ia ficar bem.
    Rogers abraçou a mulher com todo o afeto que lhe tinha, e brincou de volta:
    – quando estivermos de volta em casa, vou fazer o meu trabalho, Black Widow.
    — Vou cobrar, Capitão.
   
           *
   
    Laura se aliviou em ver Natasha muito melhor, na manhã seguinte; Lucy parecia ter se esquecido dos pesadelos, também, enquanto brincava com os primos, e a manhã correu estranhamente calma: Clint e Natasha a ajudando nos trabalhos da casa, as crianças restando pequenas ajudas entre uma brincadeira e outra, Banner se ofereceu para cuidar dos animais da fazenda, enquanto Steve e Tony pareciam ter transformado o corte de lenha em uma competição – na qual Steve claramente estava na frente.
    — Thor não disse onde ia procurar por respostas? — Tony foi cauteloso ao conduzir o assunto.
    — Às vezes meus colegas não me contam as coisas. – Steve rebateu, ácido.
    — Dá um desconto. Não sabemos o que ele viu.
    — Os heróis mais poderosos da Terra. – Rogers dividiu um cepo ao meio com um golpe só. – Derrubados por dois adolescentes.
    — Bom, você se saiu bem nessa, não foi? – Stark apoiou o machado no chão.
    — Algum problema com isso? — A tensão entre ambos estava claramente aumentando, e Romanoff se encostou ao pilar da varanda para assistir, e intervir se fosse preciso.
    – pfff, testosterona. – Natasha grunhiu baixinho, revirando os olhos.
    – Vou chamar o Tony. – Laura ia se adiantando, mas Natasha deu um sorrisinho.
    — Naah, deixe o Nick esperar um pouco. Quero ver quem vai ganhar a discussão.
    — Você tem doze anos de idade, Nat? — Apesar da pergunta, Laura se sentou no banco da varanda.
      – Não confio em um cara sem um lado sombrio. Me chame de antiquado. – Stark definitivamente precisava aprender a redirecionar raiva, culpa e frustração. Ou Romanoff poderia arremessar uma cadeira nele...
    — Talvez você não tenha visto, ainda. – o tom do Capitão desceu vários tons.
    — Sabe que Ultron quer nos separar, né?
    — Percebi. Só estava esperando quando ele ia nos contar. – A alfinetada não passou despercebida a Tony.
    – Banner e eu só pesquisávamos!
    — Algo que afetaria a equipe!
    — Que acabaria com a equipe! — silêncio por um momento. — Não é essa a ideia? Deixar a Terra segura e irmos pra casa? Você não ia gostar de poder buscar a Lucy na escola, sem se preocupar quando os próximos terroristas vão atrás dela, ou quando a próxima invasão vai começar? Não acha que todos nós merecemos paz? Que a Natasha não ia preferir uma vida segura para a filha de vocês? Uma vida como a dos Barton, em vez de correr perigo e se arriscar na linha de trabalho suicida dela? — golpe baixo, mas real.
    A frustração e angústia explodiram em Steve; agarrando o tronco com mãos nuas, ele partiu a tora de meio metro na metade, com um único puxão.
    — Não é sobre o que merecemos. Sempre que alguém tenta ganhar uma guerra antes que comece, inocentes morrem. Sempre.
    Steve voltou as costas para Stark e retomou o corte das toras; após aquela demonstração de força bruta, Laura não resistiu a alfinetar a amiga:
    — E você namora esse cara... Você é masoquista ou suicida? — A sra Barton riu quando viu, perplexa, que Natasha corou. – Nat... você ruborizou, foi isso mesmo? Porque essa é novidade!
    — Cala a boca, Laura. – A ruiva balançou a cabeça,  uma das mãos sobre o rosto para escondir o risinho embaraçado. —  Ainda bem que a Lucy está lá fora...
    — Ainda bem que os meus não leem mentes. – a morena rebateu, se levantando. – Agora eu chamo o Tony, e você segura seu golden retriever.
    Romanoff assentiu, e se ocupou pegando a pilha de lenha já cortada e organizando no estoque de uso imediato, ao lado da varanda, enquanto a outra mulher trapaceava para fazer Stark ir ao encontro de Nick Fury.
    Steve deixou o machado de lado e se aproximou da russa, que declarou sem desviar os olhos de sua tarefa:
    — Você sabe... Tony tem um ponto. Ele peca na execução, mas... A teoria faz sentido.
    — Às custas de quantas vidas, Nat?
    — Por isso eu falei que ele peca na execução. -– Batendo as mãos para tirar restos de madeira, ela se voltou para o noivo, que tirou uma lasquinha do cabelo ruivo com um olhar de amor.
    — É o que você gostaria? Uma vida assim? Segura?
    Natasha encolheu os ombros:
    — E nós sabemos viver assim, Steve? Você não sabia ficar fora de problemas nem quando era um magrelo asmático, e eu... – Ela deu um sorriso amargo. – Eu sou a prova de que os piores monstros têm rosto bonito. Não sei ser outra coisa além de uma espiã e assassina. E mesmo se tentássemos! Nossos inimigos nunca iam deixar de nos perseguir. Acredite, eu já tentei. Não tem saída dessa vida.
    — Mas com o projeto do Tony...
    — SE desse certo, e tem um enorme "se"... então talvez o mundo não precisasse mais da gente, e a Lucy pudesse ser só uma garotinha normal, e você pudesse cortar lenha pra lareira e cuidar da fazenda, enquanto eu dava aulas de balé ou coisa do tipo. Agora... Você nos vê fazendo isso, enquanto o mundo continua o mesmo caos de sempre?
    — ... Suponho que não. — Ele a segurou contra si e beijou sua testa. — O que você e Laura estavam falando?
    — Argumentando se parávamos ou não a discussão. – Natasha disfarçou – Agora vamos para dentro: temos visita.
    — Visita?
    — Achou que o Nick não ia vir correndo pra nos dar uma força? – A espiã deu aquele sorrisinho torto que Rogers amava e seguiu para dentro. — Vamos, Capitão.
   
    ****
   
        Pietro amparou a irmã enquanto ela se contorcia em mais uma pontada de dor.
    — Wanda, a gente tem que ir pra um hospital!! — esbravejou, quando ela finalmente conseguiu abrir os olhos novamente.
    — Não vai adiantar... A menina... Ela fez algo comigo. Eu não ia lhe dar pesadelos, apenas fazê-la dormir... mas ela lutou e entrou na minha cabeça... eu fiz a ilusão e... ela rebateu... A-ah!!! — A sokoviana segurou ambos os lados da cabeça, chorando. — Mama... Papa... pozhluysta, Bozhe moi, pozhaluysta...
    — Wanda... Wanda, a gente já é adulto! Mamãe e papai não estão aqui, já faz oito anos! Acorda! Volta pro presente! — Ele a sacudiu, tentando tirá-la do flashback, angustiado, e puxou sua mão para o próprio rosto, tentando fazê-la sentir sua presença a fim de se ancorar. Um lado engano: ele sentiu o escarlate invadir sua mente enquanto a visão se escurecia.
   
    (...)
   
    — MAMA! PAPA!!
     Os gêmeos gritaram e gritaram, rezando para que os pais estivessem a salvo, no andar de baixo! Talvez houvesse escombros sobre eles, mas estariam bem, certo? Papai e mamãe sempre estava bem, eles sabiam das coisas! Eles sabiam andar no escuro sem ser pegos pelos monstros, e trancar as portas para os guerrilheiros não poderem entrar. Sabiam apagar as luzes quando as facções lutavam, para não denunciar sua presença, e conseguiam saber a hora de descer para o porão antes mesmo de as sirenes tocarem! Sabiam cozinhar e atirar e consertar coisas, e todas as coisas difíceis de adultos que vinham ensinando aos filhos. Wanda e Pietro eram bastante independentes, mas mamãe e papai sabiam absolutamente tudo!! É claro que estavam bem!
    Pietro continuou chamando, até que Wanda tapou sua boca: um assobio típico... Eles se encolheram mais sob a cama – como mamãe sempre ensinara a fazer – e, de repente, a parede caiu sobre o leito, poeira se levantando e a nova onda de choque balançando todo o chão. Mas não hoive fogo, nem explosão... Quando a poeira baixou e ergueram os olhos, o que puderam enxergar foi o nome em amarelo vibrante... Stark. A ogiva estava semienterrada no solo, e Pietro ia começar a gritar, quando Wanda tapou sua boca de novo. Havia vozes em redor.
    — Wanda, pode ser ajuda!
    — Ou podem ser quem jogou as bombas... Vão machucar a gente.
    Os escombros impediam que fossem para trás, e a ogiva impedia que fossem para frente. O medo os paralisou, a mão gélida do pânico oprimindo seus pulmões enquanto cada respiração podia ser o gesto que dispararia a bomba. As crianças se abraçaram e fecharam os olhos, apavoradas.
    — Wanda... Papai e mamãe vão achar a gente. Vai ficar tudo bem.
    Wanda não falou nada. Ela sabia que os pais não mais viviam: não podia mais sentir suas mentes. E ela sabia que Pietro também entendera haverem se tornado órfãos... Ele apenas estava mentindo para acalmá-la. Tudo bem... tudo bem... se explodisse... se explodisse... pelo menos iam estar com mama e papa... certo?
    (...)
    Ela torceu o nariz para o mingau de água e trigo feito com farinha rançosa... tinha um gosto terrível, mas era o que havia, no inverno... as tropas sokovianas recebiam a maior parte dos recursos, no inverno, para sobreviver em batalha – ou assim o governo oficial alegava, enquanto pagava rios de dinheiro aos yankees para manter privilégios – sobrando pouco para um orfanato de mutantes. Dois anos ali, e o pesadelo só piorava... No dia de seu aniversário, Wanda e Pietro foram separados e obrigados a dormir em quartos diferentes. Eles nunca haviam dormido longe um do outro...
    Naquela noite, ela acordou em pânico com o som das sirenes. Aquela área da cidade nunca fora bombardeada antes, mas só o que conseguia era reviver o dia da morte dos pais, e o terror dos dias soterrada... Sem pensar em consequências, correu ao longo do salão de cimento com camas enfileiradas, enveredou por dois corredores e escancarou a porta do dormitório masculino. Precisava vê-lo. Precisava sentir que ele estava respirando...
    Ela se agarrou ao irmão, que acordou no susto, mas imediatamente a abraçou e puxou para si, cobrindo a boca de Wanda para que os outros não acordassem com os soluços dela. Ele a abraçou e aninhou consigo, puxando as cobertas sobre ambos e a embalando até que ambos caíssem no sono.
    Acordaram com o golpe de uma vara em ambos. A "cuidadora" arrancou as cobertas e arrancou Wanda da cama do irmão, berrando sobre como o que faziam era uma "imoralidade" e "indecência", enquanto descia a palmatória nas mãos e pernas de Wanda, que gritava e chorava; Pietro tentou proteger a irmã, mas dois enfermeiros o seguraram, arrancaram sua camisa e calça e, na frente dos outros meninos mesmo, o espancaram com um pedaço de fio elétrico até que ele se urinasse de dor...
    (...)
    A família americana havia escolhido Wanda. Wanda, a garotinha assustada e comportada, em vez do garoto rebelde. Já o casal finlandês optara por Pietro, cujos cabelos brancos e olhos azuis eram perfeitos para se passar por filho de ambos. Havia algo de errado: famílias não adotavam crianças mais velhas daquela forma, sem uma formação de vínculo antes, nem separavam irmãos à força, mas... Mas aqueles não pareciam ligar. Os irmãos se agarraram enquanto tentavam tirar Pietro da irmã, e foi então que algo aconteceu: os olhos da menina de 12 anos se avermelharam, e uma névoa escarlate explodiu ao seu redor! Os adultos caíram sobre os joelhos, e Pietro agarrou a mão da irmã sem sequer questionar algo. Não pegaram sequer roupas, apenas correram porta afora, se recusando a ficar um segundo a mais naquele lugar!
    (...)
    Viviam há oito meses nas ruas. Os adolescentes de 13 anos estavam sem comida há três dias, e seus corpos estavam fracos. Wanda se desesperava ainda mais quanto ao irmão, pois seu metabolismo rápido consumia muito mais energia que o dela. Haviam conseguido roubar alguns pedaços de pão e mendigar alguns trocados, mas o inverno consumia mais calorias do que conseguiam repor. Ela se esforçava para manter as roupas de ambos íntegras com linha e agulha – havia conseguido os itens num abrigo, para reformar para ambos roupas que eventualmente ganhavam – mas... era realmente difícil vedar todos os minúsculos poros por onde o vento conseguia entrar e roubar calor. Pietro estava sempre tentando roubar comida e pequenos objetos, inclusive dos quarteis americanos, e a irmã se desesperava que, algum dia, ele fosse preso ou morto.
    Por isso, quando o homem bem vestido a chamou do beco em que dormiam, ela foi. Mesmo sabendo que raramente havia boas intenções, que ele podia querer seu corpo ou exigir que cometesse algum crime para ele. O estranho lhe prometeu muito dinheiro se fosse consigo até a pousada, e ela foi, mesmo aterrorizada... Precisava alimentar Pietro, ela via o irmão perder carne a cada dia, e ele não sobreviveria até o verão, sem uma refeição decente... Era só nisso que pensava enquanto fazia o caminho atrás do homem rico.
    (...)
    Ela arranhou, gritou e se debateu enquanto o sequestrador tentava um aperto eficaz para injetar a droga. Podia não saber o que ele faria consigo, mas sabia que, se a agulha entrasse em sua pele, algo horrível aconteceria. Ela chutou e mordeu, e a névoa se manifestou de novo, mas dessa vez o atacante apenas cambaleou. O uso de seu poder cobrou o preço, e ela tropeçou, sentindo uma agulhada no braço. Lutou de novo e a seringa voou longe, sem injetar a maior parte do conteúdo, mas em segundos a visão da garota ficou turva.
    Se debatendo fracamente enquanto seus pulsos eram amarrados, ela sentiu algo quente espirrar em seu rosto, e sua visão se tingiu de carmesim, enquanto um som gorgolejante preenchia o quarto! O agressor caiu de costas, sangue escorrendo da garganta, e Wanda viu a silhueta de Pietro, pálido e furioso, um caco de vidro ensaguentado na mão, que também sangrava. Ele olhou para ela, e havia raiva em seus olhos, tanto quanto desespero.
    Eles brigaram feio. O menino a acusava de se colocar em perigo, e tinha razão, mas ele não se colocava em perigo por ela, todos os dias?! Ele era sua única família, e ela faria qualquer coisa para o proteger!!
    Terminaram por esvaziar os bolsos e pertences do cadáver, roubando seus casacos, roupas, dinheiro e objetos. Ele tinha coisas de valor menor, que os gêmeos levaram, mas deixaram as joias e itens eletrônicos, pois isso os delataria imediatamente como ladrões. O dinheiro do homem comprou refeições quentes por boa parte do inverno, e até sapatos novos, para que seus pés não gangrenassem do frio. Melhor alimentados e mais fortes, Wanda passou a catar lenha na floresta e vender na cidade, enquanto Pietro fazia pequenos serviços como limpar chaminés, consertar coisas e carregar objetos pesados, como papai havia ensinado, e como aprendera a fazer melhor nos últimos anos.
     A vida não ficou fácil, mas ao menos tiveram o que comer e cobertores para dormir na velha casa bombardeada em que se haviam instalado e montado seu precário lar: um colchão de retalhos costurados e enchido com folhas e grama seca, cobertores de lã crua e retalhos de roupas velhas, tudo costurado junto para criar várias camadas. Pietro usou barro e entulho misturados para vedar os buracos no único cômodo,  e pedaços de lona conseguidos perto dos quartéis para deixar tudo realmente à prova de neve e chuva. Seu fogão eram alguns tijolos empilhados para fazer fogo no meio e, apesar de encher tudo de fumaça (uma chaminé permitia que o calor escapasse com a fumaça), também aquecia o ambiente. A porta tinha três camadas de tábuas pregadas, que Wanda fortaleceu com cola de resina dos galhos que cortava na floresta, e Pietro roubou correntes e cadeados para garantir que não poderia ser tirada das dobradiças ou forçada a abrir. Era um progresso, depois de dormir nas ruas por um ano inteiro e revirar lixo para conseguirem comer.
    (...)
    A HIDRA era como uma história de fantasmas. Todos sabiam sobre ela, mas ninguém sabia muito, de verdade. Histórias sobre a Segunda Guerra, algumas dizendo que haviam lutado lutado ao lado dos nazistas, outros dizendo que haviam criado os supersoldados que ajudaram a acabar com a Guerra... Era a força militar que compunha o grosso do exército anti-estadunidense, que lutava pelo direito de Sokovia a sua soberania nacional... Então não podiam ser tão maus, certo?
    Quando a HIDRA começou a recrutar entre os jovens, prometendo o poder de defender seu país, de expulsar os yankees... A escolha pareceu óbvia. Afinal, o que tinham de fato a perder, que já não tivessem deixado no túmulo dos pais?
    (...)
    As vozes não paravam... Sua telepatia se intensificara para muito além de tudo o que já imaginara, e continuava expandindo... O mundo se tornara uma cacofonia insana, mesmo dentro da cela!! Sentia dor e ansiedade e batia contra a própria cabeça para encerrar o barulho, mas era infrutífero. O barulho estava lá. E nunca passava. E cada vez que suas emoções saíam de controle, a névoa vermelha fazia tudo levitar e voar pela cela... Pietro... Só precisava ver o irmão... por favor, apenas um minuto, através do vidro... apenas ouvir a voz dele. Ele estava vivo, não estava...?
    (...)
   
    O toque metálico de Ultron os despertou. Os gêmeos acordaram em pânico, demorando a reconhecer o navio onde se haviam abrigado, arfando e se debatendo, mas o robô os segurou no lugar com cuidado e os acalmou com a voz, como se de fato pudesse compreender suas naturezas humanas, aguardando que se recompusessem. Era tão estranho que a pessoa a melhor os tratar em oito anos fosse logo um robô! Mas Ultron os ouvia, preocupava-se com eles e os fortalecera. E acima de tudo... Ele destruiria Stark. O homem que começara o inferno em suas vidas, que lhes tirara absolutamente tudo o que tinham.
    — Venham, crianças. Fizeram bem o seu trabalho, agora temos uma viagem pela frente. Logo, teremos Stark a nossos pés, e os Vingadores serão extintos desse planeta, junto com todos que já lhes fizeram mal.



E é agora que a Jiripoca vai piar!!!
Obrigada a todo mundo que está lendo e interagindo com a história!! Vocês são INCRÍVEIS!!!

A Aranha na TeiaOnde histórias criam vida. Descubra agora