29:50, 15/4°/551 Ano Ancestral

Já faz algum tempo desde que o Lázaro me visitou. Ele ainda me mandava uns telegramas com pedidos em específico. Sabe, sou uma ladra muito fodona e tal, mas me incomoda quando fica mandando muito em mim. Pelo menos esse serviço pagaria bem e me agradava um pouco.

Tô vestindo meu manto furtivo, é só uns recortes de pano preto que tapam meu rosto e minhas roupas. Quando ando na noite com isso, fico quase invisível. Levou um tempo fudido pra eu conseguir fazer isso, ser a melhor. Mas com determinação e habilidade a gente chega onde quiser. Tava andando pelo Barramares, um bairro vizinho do meu na comunidade, pra fazer o serviço da vez.

Qual era o serviço? Muito simples, eu tinha que invadir um galpão da concorrência e acabar com a produção. Se eu visse alguém, teria de passar o aço também. Não posso ser vista e nem deixar rastros. Tudo isso por V$600. Às vezes achava que cobrava pouco...

Me esgueiro entre as ruas, aproveitando pelos pontos mal iluminados dos postes. Começo a ouvir passos de alguém e me enfio atrás de um beco. Dois guardas passam reclamando do salário e de ter que trabalhar até tão tarde. Engomadinho de merda, fica batendo em gente inocente e usando magia e reclama de barriga cheia? Não fode, porra!

Não vou me estressar. Continuo meu caminho conforme passo por uma quantidade considerável de mendigos. O cheiro de quem não toma banho a alguns meses fica forte. Não só isso, como o cheiro de carne podre também, forte e fedido pra caralho. Olho pra um deles e vejo a coberta tampando tudo exceto a cabeça. Ele não tinha um dos olhos. Não tinha, porque consigo ver que morreu agora a pouco. A pele toda manchada de preto, os dentes quase todos caídos, nenhum cabelo quase e tava seco, seco, seco. Cacete, krokodil era muito brutal, a droga arranca pedaços de ti e te mata do pior jeito possível... Espero que a mãe do Pedrinho nunca tenha que ver o filho assim.

Provavelmente esses mendigos todos são viciados que tão do lado do galpão pra pegar o produto assim que o distribuidor sai. Claro, os guardas incompetentes não sabem disso ou preferem fingir que não sabem. Acho que é a segunda opção.

Finalmente cheguei no galpão, tinha um cadeado enorme e bem reforçado na frente do portão de aço. Não demorei muito, peguei minhas ferramentas e comecei a trabalhar. Ai ai, é muito difícil ser eu. Desfiz o cadeado em 23 segundos! Sou muito foda. Empurro devagar o lugar pra evitar que qualquer um ouça. Pode haver algum sistema de alarme, mas é raro colocarem porque chama atenção. Geralmente esse tipo de lugar eles colocam uns marmanjos de confiança pra fazer a segurança e reza pra nunca tomar uma batida, se tomar, se muda e corre.

Nada no lugar, acho que dá pra entrar tranquila. Me agacho e entro rápido enquanto fecho o portão fingindo trancá-lo. Tá escuro pra cacete, mas a meia luz dos postes atravessando as janelas ajuda bastante. Consigo ver umas três bancadas com gaveta bem no centro. Nas paredes, parece que tem estantes abaixo das janelas. Pelo visto não dá pra ver muito de lá de cima, mas a luz que entra é perfeita pra trabalhar nesse horário.

Beleza, agora eu só tenho que chegar nessas bancadas e achar os materiais. Eu não entendo muito de química, mas tô ligada que se derramar a porra toda ou tacar água em boa parte dos materias pro krokodil já fode com tudo o suficiente. Tô ligada também que isso vai dar uma fumaceira desgraçada, então tenho que fazer rápido e sair rápido. Me aproximei das estantes e vi uns galões pretos estranhos. Dei dois toques em alguns e percebi que muitos estavam vazios. Deve ter produto pronto aqui também. Tenho duas espadas curtas e uma adaga que perfura fácil esse alumínio, mas quando eu tava pra fuder com tudo, eu ouvi a corrente do portão sendo solta.

Desesperada, eu pulei para trás da bancada. Era uma fixa no chão, então tampou meu corpo tranquilamente. Prendi a respiração e ocultei minha presença o máximo que pude. Então, duas vozes vieram do portão.

— Jessé? Jessé? Eu não falei pra trancar essa merda? O que diabos tu estavas pensando?

— Eu tranquei, eu tranquei, senhor Valter! Algum mendigo deve ter quebrado.

O tal Valter resmungou mais alguma coisa e começou a andar. Pelo visto aqui não tem nenhuma iluminação, já que não ligaram nenhuma pedra luminosa ou conjuram qualquer magia para iluminar o local. Quem seriam? Seguranças? Não... muito tarde pra começar a vigília agora, será que esses dois são os cozinheiros? Fiquei sem acreditar quando comecei a ouvir a conversa deles:

— Vamos começar logo, quanto mais cedo terminarmos, mais cedo acabamos. Vai, pegue os frascos na bancada e vamos começar a cozinhar. — Disse a voz do Valter.

Sem muita luz seria impossível ver qualquer coisa com clareza. Então tinha duas possibilidades: ou eles eram Ferais Felinos, que conseguem enxergar no escuro, ou uns Mestiços, a galera que tem sangue de demônio e consegue enxergar suave no escuro como se fosse nada. Ouvi os passos do Jessé chegando e então ele parou subitamente e disse:

— Olha a gente não precisa fazer o krokodil agora, tô capengando de sono e nem faz diferença entregar o produto antes ou não!

— Jessé, nosso concorrente é O Falsário, entendeu? O Falsário! Precisamos do melhor, mais rápido e mais intenso produto pra conseguir lucrar, do contrário ficamos pra trás.

Claro, era por dinheiro. Eu não posso julgar muito, sabe, já que sou uma ladra no fim do dia. Mas nunca fudi com ninguém que não merecia. Ou era um ricaço babaca ou era um traficante que fodia com a galera. Eu sei que é hipocrisia minha, mas esses caras... É por conta de caras assim que o Pedrinho e outras crianças tão nas drogas. E por conta de que? Lucro.

O Jessé se aproximou, a bancada que ele precisava pegar os materiais era justamente onde eu me escondia nas sombras. Cada passo ele ficava mais perto e então ele chegou do meu lado. Só teve um segundo de reação, afinal, levantei tão rápido que ele não pode nem abrir a boca. Me escondi da direção da voz de Valter atrás do corpo do Jessé, vendo os olhos azuis dele se esvaindo conforme minha mão ficava suja de sangue no pescoço dele. Valter estranhou a parada súbita do parceiro e então ele entendeu. Ficou de costas e começou a correr rápido, mas eu não perdoei um, porque perdoaria outro? Corri mais rápido ainda, cheguei a pouco mais de um metro e meio dele e então atirei a adaga ensanguentada nas costas dele. Valter era velho, não conseguiu gritar quando dei uma joelhada nas costas dele no chão ainda e então terminei de passar o aço. Quando virei o corpo, vi que era careca e possuia um chifre minúsculo na testa. Usava óculos também. Não tenho o mínimo de empatia por esses merdas.

Vasculei os corpos e então vi que havia uma pistola no corpo do Valter. Forjei uma discussão e então atirei no pescoço de Jessé, ao mesmo tempo que forjei as digitais dele na minha adaga. Depois, foi só fazer de um incêndio. Fim da história, aquele galpão não era mais uma fábrica de krokodil.

Enquanto me afastava, fiz questão de convencer alguns mendigos de que eles ouviram gritos de discussão e que nunca me viram. Forjar algumas provas era fácil, principalmente quando só tem fábricas nesse bairro. Olhei de longe aquele lugar queimando enquanto os bombeiros ligavam a sirene em direção ao local.

Minha cabeça ficou meio cheia enquanto eu dava as costas pro local. O que fiz hoje pode ter ajudado a acabar um pouco com o tráfico, mas eu ainda trabalho pra um cara que também é traficante. Não resolvi o problema, mas eu quero resolver. Pra isso, eu preciso ficar muito mais forte. Porque vai chegar o dia em que o Lázaro vai ser o único cara distribuindo o produto e nesse dia eu vou ter que resolver uma diferença com ele. Pra isso, eu preciso daquele poder foda que meu primo tinha, o poder que eu mesma roubei daquele forte. Com a ajuda da Agnes, talvez eu consiga me tornar uma Santa Cavaleira.

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