14:21, 16/4°/551 Ano Ancestral

Hoje o dia tava mais tranquilo. Peguei uns verninos e dei uma passeada até a cabine telefônica. Até queria ter um telefone fixo em casa, mas são V$450 que eu não pago nem fudendo e fora o custo pra manter a linha ativa. Enfim, tava no cruzamento da Av. Beija-Flor com a Rua das Mangas Verdes quando cheguei na cabine amarela e com vidros nas grades. Privacidade sonora tu até podes ter, mas visual... Acho que fizeram isso pra não ter uns tarados fazendo coisas lá dentro, se é que tu me entendes.

Entrando na cabine, peguei os trocados de verninos e enfiei no buraco das moedas. Comecei a girar a manivela e peguei o fone. O barulho da linha sempre era irritante, mas pelo menos sempre era rápido pra ouvir o atendente dizendo:

— Central de Telecomunicação da Capital, com quem deseja falar? — A voz sempre era meio estourada e metálica, mas dava pra entender.

— Er... Oi, eu queria falar com Agnes Boticário do número... — Parei e peguei aquele papelzinho que tinha anotado. — 3.012!

— Certo, darei sequência na sua ligação. Por favor, aguarde.

Esperei de novo o barulho infernal da linha a cabo. Sério, quem foi o imbecil que disse que isso seria uma boa ideia? Botasse uma musiquinha, sei lá. Qualquer coisa era melhor que ficar ouvindo esse tuuuu, tuuuu, tuuuu do caralho. Enfim, Agnes finalmente atendeu dizendo:

— Salve, quem é?

— Recebeu minha carta ontem?

— Ah, és tu, Samira? Que bizarrice é essa?

— É um negócio que copiei, posso te explicar melhor pessoalmente.

— Podia ter me mandado um telegrama sobre, sabes né?

— É meio complicado falar disso assim. Depois que tu disseste que a guarda vasculha as correspondências e tal, fiquei com um pouco de medo de mandar.

— Deve ser bem sinistro pra te deixar assim... — Pude ouvir ela erguendo as sobrancelhas. — Mas sério? Minha amiga maluca tá com medo de algo? Vou ter que tomar uma hoje pela raridade do evento.

— Só uma pinguça igual ti pra arranjar essa desculpa viu. — Ela riu do outro lado.

— Mas o que tu queres com esse... "ritual"? — Deu pra ouvir ela mexendo no papel. — É meio bizarro e tem uns materiais bem caros aqui, pra ser sincera. A conjuração parece um pouco complicada também...

— Então, queria fazer ele. Acha que consegue?

— Ah sim, sei lá, acho que sim? Quem é o cara que vai ganhar essa parada?

— É pra mim mesmo, na real.

— Ué, mas aqui fala que tem que ser um homem.

— Foda-se Agnes, eu quero tentar! Vou pagar pelos materiais e a seu serviço, podes fazer ou não? — Acho que pareci um pouco irritada demais aqui.

— Relaxa, ruivinha! Vou te cobrar por isso não, mas se tu puderes me falar sobre o que é e comprar os materias já fico mais que grata.

— Ótimo. — Suspirei aliviada. Agnes é a única maga que conheço. Se bem que ela não é exatamente maga. — Posso colar aí hoje às 25?

— Pô, tava marcando com uma mina aqui...

— Por favooor... — Tentei colocar um jeitinho na voz, Agnes quer me pegar faz mó cota. É errado eu me aproveitar disso? É, mas só uso quando preciso muito.

— Aff, argh, tá. Tu podias gostar de buceta...

— Foi mal, gosto muito de pica. — Dei de ombros e nós duas começamos a rir.

A gente continuou papeando por mais algum tempo, mas a cabine tem tempo de uso. Tava com as moedas quase acabando e já eram quase 15 horas. A fome bateu, me despedi dela e fui fazer as compras pro ritual. Cara é bizarro como magia funciona com uns negócios aleatórios e nada ver. 150g de pó de vidro temperado, três lascas de obsidiana em forma de triângulo, 200ml de água benta e uma armadura de Santo Cavaleiro. Claro, eu ocultei o último componente porque Agnes daria um pulo se soubesse, mas acho que ela não vai ficar tão puta comigo se descobrir na hora. O prejuízo dá uns V$900... Velho, ainda bem que tô com dinheiro sobrando, que facada.

24:12, 16/4°/551 Ano Ancestral

Almocei e fiz as compras pro ritual. Consegui economizar V$40,12! De grão em grão a galinha enche o papo. Taquei tudo na bolsa, vesti minha calça rasgada preta e coloquei meu casaquinho bege. Não posso ir muito solta pro laboratório da Agnes, ela fica me comendo com os olhos às vezes. O único problema era levar a armadura do Jamir pra lá, chamaria atenção pra caralho andar por aí com essa caixa de metal gigante nas costas. Talvez eu cubra e faça um frete com outras caixas? Sei lá, talvez funcione.

O foda também era a armadura. Meu primo era alto pra cacete, isso vai caber em mim? Vai dar certo esse ritual? Samira! Para de se sabotar, tinha que pensar positivo. O não eu já tenho, vou atrás da humilhação agora. Não, pera.

Enfim, terminei de me arrumar, provavelmente a Agnes não vai querer tentar fazer isso hoje, vou só levar os materiais e aí explico meus motivos. Tomara que ela entenda.

Já tava com a bolsa no ombro quando alguém bateu na minha porta. Estranho, Lázaro não tinha me mandado telegrama ou um menino de recados nem nada. Meus vizinhos aqui dos apartamentos conjugados nem falam comigo. Não comprei nada que pudesse chegar dos correios e tal...

Abri a porta pra matar a curiosidade e então eu vi ele.

Era um cara alto de pele bem morena. Tinha uns 1,85m pelo menos, fora um par de asas enormes e bem fechadas nas costas dele. As penas eram castanhas claras e brilhavam muito com a luz dos sóis poentes batendo nelas. Ele parecia ter alguma grana, já que usava um daqueles ternos chiques azuis com uma gravata cara no pescoço. Mesmo assim, a cara dele não condizia com essa roupa de ricaço. Fala sério, corte degradê e brinco na orelha esquerda? Até o cortinho na sobrancelha ele tinha! Ok, ele era estiloso, confesso. Mas o que me chamou mais atenção foram os olhos castanhos dele, isso é raro. Não só pela cor, mas também pela surpresa que tinha estampada naqueles lábios carnudos. Ele tava surpreso em me ver?

Não sei, mas o tempo pareceu ter parado no momento em que abri aquela porta, só pra que eu pudesse olhar devagar aquele Feral Alado, esse povo meio bicho. Eu perdi a conta de quanto tempo encarei aqueles olhos sem parar. Sei lá, ficou quente pra caramba do nada. Senti meu coração acelerar e então vi que tanto ele quanto eu estávamos com a boca aberta e sem respirar. Eu precisava saber quem era ele.

Entre Crimes & PaixõesOnde histórias criam vida. Descubra agora