Capítulo 13 - Fogo Infernal

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O dia demorou a passar e a jovem já estava impaciente. Parecia que o dia havia se tornado uma tartaruga, da espécie mais lenta e mais preguiçosa que existia. Quando o sol finalmente se escondeu dando chance para as estrelas brilharem no céu, Lucy estava cansada. Apesar de sua determinação, a espera a deixou bastante exausta, mas não só isso, a expectativa do que viria e daquilo que ela iria ver fizeram sua mente quase explodir. Ela ainda temia que as pessoas a reconhecessem na rua e, caso isso acontecesse, ela estaria em sérios apuros. A escuridão caiu sobre a cidade e parecia que ninguém morava ali, como uma cidade fantasma, sequer podia se ouvir os grilos. A exaustão fez os olhos da jovem cederem ao sono e ela adormeceu antes do início daquilo que viria a ser a pior coisa que já teria testemunhado em toda a sua vida.
Tochas incendiadas clareavam as ruas como se fosse dia, vividas e flamejantes elas se aglomeravam nas mãos de seus condutores à medida que desciam a rua em direção à praça da cidade. O clarão atravessou as frestas das portas e janelas da casa de Lucy e incomodou os olhos da moça adormecida. Ela abriu os olhos e, por um segundo, achou que já fosse a luz do sol e que havia perdido sua chance de ver aquilo que todos planejavam, mas logo viu que não se tratava do sol e sim de uma multidão com tochas nas mãos.
Não seria a primeira vez que isso acontecia, mas a última vez que havia acontecido ela não passava de uma menina, presenciando a marcha daquela multidão no colo da freira Dominic, que logo tratou de colocá-la na cama. Lucy não se lembrava muito bem daquele momento em específico, foi como tivesse sido tirado de sua mente, mas agora ela já estava mais velha e consciente do que estava acontecendo e com certeza aquilo não significava algo bom.
Mas como sair de casa sem que a reconhecessem? A maioria a entregaria se ela aparecesse lá e seu pai não permitiria, ele jamais permitiria que ela andasse na rua sozinha ou com aquela multidão e ainda tinha prometido a Oliver que ficaria em casa naquela noite, mas ela não podia ficar lá e fingir que nada estava acontecendo. Ela pegou uma capa preta que havia no fundo de seu baú e a vestiu, rezando a Deus que ninguém a reconhecesse. Ela abriu a porta e viu as pessoas andando ao longe, pareciam um rebanho de ovelhas seguindo cegamente seu pastor, ela os seguiu de longe com cautela para que não percebessem sua presença. Enquanto isso, a multidão crescia cada vez mais e, a maioria das pessoas, era composta por curiosos que apenas queriam saber o que estava acontecendo.
Em frente a Catedral de Notre Dame, um palanque improvisado se encontrava no centro da praça, um poste estava sobre ele, cravado na madeira e envolto por lenha e palha. Os membros da igreja estavam naquele palanque, todos com mantos pretos, Oliver estava ao lado deles, vestindo um sobretudo preto com um brasão da família Dauphin e com uma tocha em sua mão.
Ao redor da construção de madeira, vários cavaleiros, tanto da guarda da igreja quanto aqueles que vieram com o Lorde Dauphin, estavam a postos, prontos para não deixarem ninguém se aproximar mais do que deveria. No poste de madeira estava amarrado com cordas grossas, o vampiro que havia sido capturado naquele dia mais cedo. Ele estava visivelmente debilitado, escorria sangue de sua testa e de sua boca, ele mal tinha forças para ficar de pé e se não fossem pelas cordas, ele estaria caído no chão.
As pessoas começaram a se amontoar em frente ao palanque, algumas assustadas, outras com fervor no olhar ao verem o inimigo que os assombram por tantos anos. Aquele momento lembravam há muitos ali presentes, tempos antigos, tempos de torturas e execuções durante a febre do vampiro.
- Cidadãos de Paris! - Gritou padre Frederic com uma tocha em suas mãos. - Hoje, nós faremos a justiça divina, como há anos fazemos contra estes demônios. - Ele apontou com ódio visível em suas palavras. - Vampiros são criaturas profanas, filhos do mal, nossos inimigos que espalham sua profanação por onde passam. Mas este não. Este não poderá mais fazer mal a ninguém e sua existência diabólica acabará hoje.
O povo urrou e gritou com as palavras de Frederic. Muitos ali presentes haviam presenciado a época da febre e odiavam os vampiros tanto quanto odiavam o diabo e seus inimigos. Lucy estava bem atrás, escondida nas sombras ela via aquela cena com horror em seus olhos. Por algum motivo, ela sentia vontade de ajudar aquele vampiro que parecia tão vulnerável no meio daqueles homens com ódio em seus corações.
- Volte para o lugar de onde veio, escória. - Oliver ergueu sua tocha. O tom de sua voz beirava a maldade e o ódio que ele carregava naquele momento. - Volte para o inferno. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, volte para as chamas infernais que é o seu lugar.
As tochas foram jogadas no feno e aos poucos, o fogo o consumiu. Aquele vampiro que antes parecia já morto, agora gritava de dor e agonia. Sua carne estava sendo queimada não só pelo fogo, mas pelo ódio de todas aquelas pessoas. Ele podia sentir as chamas penetrarem em sua pele e corroerem seus ossos, a dor de mil espadas perfurando seu corpo.
- Que se faça a vontade de Deus - Ordenou Frederic. - Queime!
As pessoas gritavam de satisfação. Aquela era a justiça divina, a justiça que eles acreditavam que manteria os vampiros longe deles mais uma vez.
Enquanto o corpo do vampiro ainda queimava, Oliver empunhou a espada e num golpe rápido e certeiro, arrancou a cabeça da criatura profana quase sem vida. A cabeça rolou pelo palanque e o sangue jorrou sobre o rosto e o sobretudo de Oliver e, naquele minuto, naquele insignificante minuto, o seu olhar se tornou sombrio. Tão sombrio quanto aquele momento macabro. Fez-se um breve silêncio e depois mais urros ensurdecedores. Oliver sabia o que poucos sabiam, ele ouviu de seu pai um dia: "Um vampiro não morre de verdade pelo fogo. É preciso lhe arrancar a cabeça". Ele nunca esqueceu disso.
- A criatura está morta! - Disse Oliver brandindo sua espada. - Sua alma condenada voltou para onde nunca deveria ter saído, o inferno.
Enquanto todos se sentiam satisfeitos com aquilo e gritavam saudando Oliver e os outros, havia uma única pessoa que se sentia mal. Era como se o fogo tivesse queimado sua própria carne e aquela espada houvesse cortado seu espírito, Lucy sentia-se mal, muito mal. Seu estômago estava revirado, suas mãos suavam e sua visão estava turva. Ela saiu de perto da multidão e adentrou na escuridão de ruas silenciadas. Algo queimava dentro de si e queria sair. Foi de uma vez só, todo o seu medo e aflição saíram de dentro dela e se esparramaram no chão gelado da noite. Ela vomitou como nunca havia feito antes, tudo aquilo, toda aquela cena revirava o seu estômago, ela estava enojada. Não entendia tudo aquilo e, principalmente, não entendia porque se compadecia do vampiro. Porque estava tão triste por alguém que deveria odiar, que deveria ser seu inimigo? Ela não conseguia nutrir sentimentos ruins pelos vampiros, por nenhum deles. A vida toda foi ensinada a temê-los e odiá-los como o homem odeia o diabo, mas ela não conseguia.
- Deus... - ela sussurrou enquanto estava agachada, esperando que mais alguma coisa saísse de dentro dela. - O que está havendo com essas pessoas? O que está acontecendo comigo?
Ela sentia que, de alguma forma, estava pecando contra Deus. Ela viu seu pai, todos aqueles que a criaram ali, tão satisfeitos com o que haviam acabado de fazer, as pessoas felizes, mas ela era a única que não sentia nada de bom vindo daquela execução. Era como se o vampiro fosse semelhante a ela e que o sofrimento dele era seu sofrimento. Talvez ela fosse má e tivesse sua alma corrompida de uma forma que nunca havia imaginado.
No meio de tudo aquilo, Anthony veio imediatamente aos seus pensamentos. Ela tinha que avisá-los, não poderia deixar que os encontrassem. Lucy estava convencida de que teria que correr perigo mais uma vez, mas não importava, não importavam os perigos, ela iria salvá-los. Sentia dentro de si essa necessidade, essa vontade queimando dentro dela. Se era pecado ou não, aquilo já não lhe importava mais. Pois aquela era a realidade, a realidade que lhe fora omitida por toda a sua vida e que, talvez, ela nunca quisesse enxergar. Tudo o que Anthony lhe disse sobre seu pai e a igreja, era tudo real, muito mais do que ela gostaria que fosse.

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora