Capítulo 21 - A Face de um Anjo Negro

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Selene era uma puro sangue da raça frísio. Ela era alta, muito grande, acima da média para éguas de seu porte, seu pelo era preto que brilhava sobre a luz reluzente das manhãs e sua crina tinha o pelo mais macio e bonito jamais visto. Ela era majestosa e ninguém podia dizer o contrário. Selene pertencia a Oliver desde que o Lorde havia começado a engatinhar. Sir Navel gostava de cavalos, criava puros sangue na propriedade de sua família e os vendia para membros da corte e até da coroa francesa. Ele tinha um macho, Titã, o maior cavalo já visto em toda a França, quando conheceu Sofia, deu a ela uma égua branca com manchas pretas, Ofélia, os dois acasalaram e Ofélia deu a luz a Selene.
Oliver amava sua égua como nunca havia amado outra pessoa em sua vida, talvez ele amasse mais Selene do que a sua própria mãe. Eles passavam muito tempo juntos, Oliver adorava galopar nos campos abertos da propriedade com Selene, gostava de pentear seus pelos e passar as tardes deitado no dorso de sua égua enquanto lia algum livro.
- Venha. - Oliver puxava Lucy com entusiasmo. - Quero que conheça alguém.
Ao se aproximarem do estábulo, Oliver conteve-se e disse:
- Feche os olhos. - pediu gentilmente.
Lucy obedeceu. Ela sentiu a mão de Oliver soltar a sua, ouviu passos largos na grama e depois o som de cascos. Ela ficou parada, imóvel, esperando por alguma palavra ou algum toque. Uma respiração forte veio em sua direção, algo farejou seu rosto e seu peito, mordiscou seu cabelo e depois expirou violentamente.
- Pode abrir os olhos.
Ela abriu lentamente e viu uma criatura enorme à sua frente. Ela arregalou os olhos, encantada e espantada ao mesmo tempo.
-Esta é Selene. - Disse Oliver acariciando o pescoço de sua égua. - Selene, esta é Lucy, minha noiva.
A égua relinchou e empurrou Oliver para o lado.
- Calma, calma. - Ele pediu. - Ela é um pouco ciumenta comigo. Sou seu primeiro e único montador. Eu diria que é amor verdadeiro.
- Ela é linda. - Ela disse olhando para Selene ainda admirada.
- Toque-a.
- Eu acho melhor não.
- Bobagem. - Ele disse. - Ela é ciumenta mas não violenta. Basta estender a mão e esperar que ela venha até você.
Lucy exitou, mas Oliver insistiu. A menina estendeu a mão trêmula, estava com medo de que Selene a mordesse ou pulasse em cima dela. Ela fechou os olhos e ficou imóvel esperando que algo acontecesse. Lucy sentiu a respiração de Selene se aproximar de sua mão, seu focinho parou em sua mão. Ela abriu os olhos e viu a égua parada diante dela, com os olhos mais puros a olhando, olhos gentis. Lucy fez carinho em seu focinho, levou as mãos até seu fronte, acariciando e sentindo a maciez de seu pelo.
- Está vendo? Ela gosta de você.
- Parece que sim. - Lucy ainda estava temerosa em tocar a égua.
- Vamos cavalgar um pouco. - Ele disse, surpreendendo a menina.
- Tem certeza de que ela vai me aceitar em cima dela?
- Não, você não vai montar nela. - Ele riu. - Selene é uma égua que possui apenas um montador. Cavalos do porte dela só podem ser montados por nobres. Não quero ser rude, mas você ainda não é uma nobre.
- Tudo bem, eu compreendo. - Ela mentiu.
- Quando nos casarmos, darei um desse porte para você. - Ele disse. - Por enquanto, a senhorita pode montar em um daqueles.
Oliver apontou para os cavalos que estavam no estábulo. Eles eram menores e mais magros do que Selene, pareciam frágeis se comparados a ela, mas Lucy não via mal naquilo. Ela nunca havia montado em um cavalo, talvez uma vez quando tinha seis ou oito anos, mas só havia sentado no dorso do animal rapidamente e descido logo.
- Escolha um que lhe agrade. - Oliver pediu.
Lucy não sabia escolher um cavalo com o olhar crítico de um cavaleiro. Escolheria aquele que lhe parecesse mais dócil e, talvez, um que não fosse tão alto. Olhou para eles calmamente e com cautela, alguns bufaram e relincharam quando a viram, outros só a ignoraram e continuaram a comer o feno que havia para eles. Ela avistou um que parecia bom, era malhado, sua crista era branca e seus olhos negros e gentis, ele estava com a cabeça para fora da portinha que o prendia dentro de seu local, ao se aproximar dele, Lucy percebeu que era ele seu escolhido.
- Escolho este. - Ela disse tentando ter coragem para tocar no cavalo.
- Perfeito! - Exclamou o lorde. - Jean, sele-o para a senhorita.
O empregado obedeceu. Tirou o cavalo de dentro do estábulo e o selou o animal, trazendo-o para perto de Lucy.
- Este é tempestade. - Disse Oliver. - É um bom cavalo.
- Ele parece bonzinho.
Oliver ajudou Lucy a montar em tempestade e logo em seguida montou em Selene. O Lorde guiou Lucy pelos campos, mostrando tudo o que havia lá. Os campos eram muito bem cuidados, ovelhas e cavalos corriam livres pela propriedade, havia um lago no pé da colina e um labirinto com muros de arbustos.
- Esse é o lugar mais bonito que eu já vi em toda a minha vida. - Ela estava encantada.
- A minha família investiu muito nessas terras durante muitos anos. - Oliver parecia orgulhoso. - Meu pai criava puros sangue, os cavalos valem muito dinheiro. As lãs das ovelhas também são muito valiosas, principalmente no inverno, recebemos muitos pedidos de lã por toda europa.
Pela primeira vez, Lucy pôde se imaginar vivendo ali, desfrutando de tudo de bom que aquele lugar podia lhe oferecer, no entanto, não era Oliver quem ela via ao seu lado e sim, seu amor proibido e afortunado. Desejou que Anthony estivesse ali ao seu lado, contemplando tamanha beleza junto a ela. Sentiu-se frustrada por não conseguir imaginar uma vida com Oliver, mas ela não podia evitar o desejo mais profundo de seu coração com aquele que ela de fato amava.
Eles voltaram para o castelo, onde os cavalos puderam descansar. Caminharam a pé por perto da edificação. Oliver lhe contava tudo o que sabia sobre a construção daquele castelo, como seus pais se conheceram, quando ele nasceu. Lucy ouvia tudo com bastante atenção tentando compensar a falta de sentimentos pelo Lorde com boa vontade. Os dois chegaram até uma árvore com grandes e grossos galhos que pareciam querer tocar o céu, havia um balanço em um dos galhos. Ele era pequeno, a corda, embora gasta, ainda parecia grossa e firme o suficiente para que alguém sentasse ali sem medo de cair.
- Meu pai colocou aquele balanço para mim - Disse ele. - Passei muito tempo aqui, imaginando que se balançasse alto o suficiente, poderia alcançar as nuvens.
Lucy riu com doçura.
- Nossos filhos brincarão naquele balanço algum dia.
"Filhos", a ideia não havia passado por sua mente até o momento, mas era óbvio que Oliver iria querer ter filhos com ela, para continuar a linhagem da família. Ela pensou como eles seriam, se teriam cabelos loiros ou pretos, olhos verdes ou azuis, se seriam meninos ou meninas. Ela sabia que um filho homem valeria muito mais do que 100 filhas mulheres, viu e ouviu isso a vida toda.
- Já brincou em um desses? - Ele perguntou.
- Não. - Ela respondeu. - Nunca tive a oportunidade.
- Então venha. - Ele puxou sua mão, a conduzindo até o balanço. - Eu a balançarei.
Lucy ficou animada. Sentou-se com calma no banco do balanço e olhou para trás, viu Oliver a empurrar gentilmente e sentiu o impulso de ir para frente e para trás. Era uma sensação gostosa, acreditou que aquela era a sensação de quase voar. O vento era forte em seu rosto, mas não se abateu por isso. Era viciante, os pés saiam do chão com leveza e voltavam para ele do mesmo modo.
- Como se sente?
- É espantoso, é incrível essa sensação. Sinto que posso voar até onde aqueles pássaros estão.
Sentia um frio em sua barriga, mas não era nada desconfortável. Aquela era a liberdade e felicidade que uma criança experimentava ao brincar, poderia parecer bobagem aos olhos de um adulto, mas era algo que ela não tinha tido em sua infância e sentia falta.
- Poderia ser feliz aqui? - A voz de Oliver parecia ter soado longe dela.
Ela foi pega de surpresa. Poderia ser feliz com ele? Aquele lugar era lindo, as pessoas eram boas e gentis, havia riqueza e esplendor para onde quer que olhasse, mas havia algo faltando, havia um sentimento faltando dentro dela.
Lucy balançou a cabeça positivamente e olhou para trás. Oliver parou de empurrá-la e segurou as cordas do balanço para que ele parasse logo.
- Quero ouvir de sua boca. - Ele deu-lhe a mão para que ela levanta-se. - Diga-me com a sua própria voz.
- S-... - Ela exitou. Sentia-se mal por mentir mais uma vez. - Sim. Posso ser feliz aqui.
Sua voz saiu tão naturalmente que ela até se espantou com sua capacidade de mentir com um sorriso tão falso. Aquela resposta havia agradado o jovem Dauphin, ele sorriu como bobo, mas, por um segundo, seu olhar se desviou e tornou-se sombrio. Seus olhos verdes ficaram com um tom escuro. Lucy desviou o olhar e olhou para onde Oliver estava fixando seus olhos, ela viu que, parada atrás de uma das vidraças, estava Lady Dauphin. A mulher saiu do alcance da visão ao ver que Lucy também estava a observando.
- Está tudo bem? - Lucy perguntou.
- Sim. - Respondeu Oliver. - Vamos entrar antes que o vento esfrie mais.

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Tudo parecia parado demais, monótono demais. A chuva caia fina e tranquila lá fora, transformando a areia em lama, as ruas estavam quase que totalmente desertas, algumas pessoas passavam de um lugar ao outro correndo, mesmo que a chuva não estivesse forte. Dentro da Catedral de Notre Dame, o silêncio predominava, estava tudo calmo, apenas o barulho da chuva lá fora ecoava pelos corredores. Dentro de um dos quartos dos padres, um candelabro estava aceso, trazendo um pouco de luz para aquele pequeno lugar. Os padres viviam uma vida simples dentro da igreja, nada de luxo em seus aposentos, apenas uma cama de solteiro com um colchão um pouco duro, um travesseiro, um banquinho com uma jarra de barro, um balde e um pequeno baú para guardarem seus pertences, todos tinham a cruz de cristo feita de madeira sobre suas camas. Naquele quarto, em específico, havia algo mais, um quadro pintado a mão por algum pintor desconhecido. O quadro não estava pendurado na parede, ficava encostado próximo a cama, com a pintura oculta voltada para a parede.
- Minha querida...- Murmurou o padre, acariciando a imagem pintada de uma mulher.
Fez-se silêncio novamente. O homem tocava sutilmente o rosto da mulher, o rosto dela era pálido como a cera de uma vela, os lábios haviam sido pintados com a cor de um vermelho vivo e os olhos eram misteriosos, não podia se distinguir a cor deles. Ele murmurou mais uma vez. Ela parecia ser alguém importante em sua vida, alguém que a marcou de uma maneira inimaginável. Mais uma vez o homem murmurou palavras que eram inaudíveis.
Batidas na porta atrapalharam aquele momento. O Padre colocou a pintura encostada na parede e andou até a porta.
- Sinto muito, senhor padre. - Disse um guarda da Catedral. - Perdoe-me por atrapalhar seu descanso, mas trago notícias sobre as catacumbas.
- Sim. - ele respondeu saindo do quarto e fechando a porta atrás dele. - Diga-me.
- Cobrimos toda a área norte e sul das catacumbas. - Disse o homem. - Infelizmente, não encontramos nenhum rastro.
- Entendo. - Ele franziu as sobrancelhas. - Reunirei os outros sacerdotes ao amanhecer, faremos novos mapas e disposições de onde eles possam estar.
- Sim, senhor. Mais uma vez, perdoe-me por atrapalhar seu descanso.
- Está tudo bem. - Ele respondeu suavemente. - Boa noite.
O padre voltou para dentro de seus aposentos, voltando para o seu mundo, seu momento. Pegou novamente a pintura e voltou a admirá-la, como se nunca tivesse sido interrompido.
- Meu amor... - Sussurrou. - Está quase acabando. Em breve, muito em breve, tudo isso chegará ao fim e, finalmente, poderei descansar. Mas ainda não. Preciso pensar, preciso tomar cuidado para que tudo aconteça como deve. Tempo, ele corre com a velocidade das águas de um rio. Mas há tempo...

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora