Capítulo 36 - Sob o manto da retidão

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O tempo. Para os mortais, ele era súbito e constante. Para os imortais, custoso e frívolo às vezes. A passagem do tempo era desigual para essas duas raças, enquanto uns tinham que correr para aproveitá-lo ao máximo em seu curto espaço, outros entediavam-se com a vastidão de seus dias inacabáveis e incontáveis.
O tempo nunca fora antes um inimigo para seres imortais como os vampiros, mas naquele dia, ele era como um senhorio cruel e vil, que zombava de seus insubordinados imortais, que teimava em querer competir com ele.
Paris estava sob um silêncio fúnebre. Oliver Dauphin havia sido assassinado na noite anterior por um vampiro. Sua mãe, Lady Dauphin, não havia suportado o peso de perder seu único e querido filho e tirou sua própria vida dentro da catedral. Era um dia fatídico.
Dentro de Notre Dame desenrolava-se uma trama mortal. O vampiro que assassinara Oliver, seria executado ao cair da noite. Não era uma execução pública como as demais haviam sido até então. Seria algo mais reservado, mas isso não significava que seria menos brutal.
O jovem Anthony estava no calabouço do Palácio da Justiça. O vampiro estava convalescente. Pendurado em duas correntes de ferro grosso, suas vestes estavam rasgadas e seu rosto decrépito. Passara a noite sendo açoitado, torturado, sentindo o chicote rasgar sua carne e seu sangue escorrendo em sua pele.
Não disse uma única palavra. Estava em completo e lânguido silêncio, como se já estivesse morto.
- Maldito. - Resmungou Gerard ao ver Anthony pendurado, sem expressão em seu rosto. - O desgraçado sequer gemeu de dor a madrugada inteira.
- Se são gritos que você quer, meu caro, logo toda a Paris ouvirá seus urros de agonia e morte. - Disse Frederic com um olhar sombrio.
Gerard mostrou um breve sorriso de satisfação. Era aquilo o que ele desejava, gritos histéricos de dor vindos de uma criatura profana e diabólica.
Julian e Harmon estavam presentes, mas ao contrário de seus outros dois companheiros, não conseguiam sentir o mínimo de satisfação naquela situação. Era quase como se os dois estivessem com um sentimento parecido com pena do vampiro.
Um cavaleiro veio correndo até o calabouço, o som de suas vestes de metal ecoaram pelo espaço com um som claro e abundante.
- Vossa Reverendíssima. - Ele disse ao se aproximar de Frederic, chegando perto o suficiente para cochichar em seu ouvido.
- Diabos! - Esbravejou o padre como um trovão na tempestade.
O cavaleiro se afastou.
- O que houve? - Quis saber Julian.
- Cavalheiros, há uma problema que depende de minha atenção imediata.
Sem mais explicações, o padre saiu do calabouço acompanhado do cavaleiro. A notícia cochichada em seu ouvido o deixara bravo, irado, atordoado. Chegou a igreja quase fumegante, com ira em seus olhos e descontentamento em sua face.
Na sacristia, dois cavaleiros seguravam uma figura baixa, vestida com hábito de freira. Ao entrar, Frederic ordenou que os dois saíssem, ficando completamente a sós com a freira.
- Você a deixou ir, irmã? - Perguntou com ironia.
Dominic não falou. Olhava para Frederic com repulsa. Ele podia ver a raiva predominante nos olhos da freira.
- A senhora sabia que a ira é um pecado terrível para ser cometido por uma freira? - Seu cinismo era irritante.
- O senhor sabia que a tortura e a mentira são pecados para um padre? - Ela rebateu.
- Bravo. - Frederic bateu palmas. - Onde estava escondida toda essa insolência impetuosa?
- Como o senhor pôde? - Ela disse irritada. - Como pôde ser tão cruel com minha menina?
- Sabe porque me tornei padre, irmã? - Ele perguntou. - Aprendi muito jovem que o homem é bastante fácil de manipular. Basta lhe dizer algumas palavras de condenação e danação eterna que eles o seguem tal como um animal acuado, em busca de poucas sobras.
- Tornou-se padre para ser cruel. - Disse impetuosa.
Ele assentiu com um sorriso descarado. Seus olhos arrogantes encontraram os olhos irritados da freira. Ele estava se divertindo com aquela situação.
- O homem não teme a Deus, irmã. Ele teme uma ideia, uma ideia de que Deus seja impiedoso e furioso. Que seus esforços para entrar no paraíso sejam em vão. - Ele refletiu, depois pareceu voltar para aquela situação. - Diga-me, para onde ela foi?
- Vá para o inferno.
O aspecto sombrio novamente dominou a feição de Frederic, parecendo um animal perigoso e pronto a atacar sua presa indefesa.
- Não precisa protegê-la, irmã. Acaso não sabe que ela é uma menina nascida da profanação?
- Lucy não é profana. - Contestou. - O senhor é a criatura mais profana que já conheci. Um homem falso, enganador e canalha.
O padre riu de um jeito repleto de sarcasmo em cada pequeno som que emitia. Ele admirava a forma como freira Dominic o contestava, como defendia arduamente Lucy, a menina que ela própria ajudou a criar. Ele tirou a adaga que estava presa em sua cintura e a empunhou despreocupado.
- Há poucas horas, neste mesmo lugar, uma mãe também defendia seu filho de maneira admirável. - Ele olhou atento para a ponta da adaga. - Acho que esta é a minha sina. Matar mães valentes que fariam de tudo por seus filhos. Tenho uma certa tendência a mandá-las para perto de Deus, como uma última misericórdia concedida por um homem de Deus.
- O senhor não é de Deus...
Rápido como a luz de um raio que risca o céu na tempestade e ágil como um leão sobre um antílope, o padre penetrou a barriga da freira com sua adaga. A ponta a rasgou de cima para baixo, como se o padre desejasse ver o que havia dentro dela.
- Não escapará impune. - Disse com a voz falha, sentindo a dor a dominando.
- Não espero escapar impune. - Declarou com um sorriso. - Não se preocupe, não ficará sozinha por muito tempo. Logo mandarei sua querida Lucy para fazer-lhe companhia.
Frederic deitou o corpo pesado e imóvel da freira com cuidado no chão. Ela já não respirava mais e o sopro da vida havia abandonado seus olhos sempre tão alegres.
- Deus... - Ele sussurrou. - Só mais uma. Permita-me matar só mais uma e depois pode me jogar no abismo infernal.

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- Como iremos prosseguir? - Perguntou Lucca ansioso.
- É um plano muito simples: nós vamos ao encontro deles na frente da Catedral. Eles estarão esperando por nós, sabem que iremos até eles e que nosso objetivo é chegar até Anthony. - Disse Vincent pondo as mãos sobre a mesa de carvalho claro. - Sir Vladimir chegará em breve com homens e mulheres para aumentar a nossa força. Seremos poucos em comparação a eles, mas temos vantagens que eles não possuem, nossas habilidades serão de grande valia nesse momento.
- E se morrermos antes de chegarmos a Anthony? - Perguntou um vampiro de cabelo cacheado que estava envolta da mesa. - Nosso esforço será em vão?
- Focaremos a luta em nós, - Continuou Vincent. - enquanto o resgate de Anthony ficará por conta de Violet, Sthephan e Benjamin. Os três adentraram na Catedral e o tirarão de lá. O resultado do que acontecerá fora da Catedral não vai interferir no resgate de nosso companheiro.
- Eu também irei! - Exclamou Lucy.
Os vampiros viraram seus olhares para a jovem pálida e assombrada, mas com um toque de bravura em sua expressão. Lucy se aproximou da mesa com uma coragem dentro de seu peito que ela nunca havia experimentado em sua vida.
- Tem certeza? - Perguntou Vincent preocupado.
- Acho que não é prudente. - Contestou Lucca. - Já temos muito com o que nos preocupar, se você for, teremos mais uma dor de cabeça.
- Mas eu tenho uma coisa que vocês não tem. - Disse convicta.
- E o que seria? - Perguntou Lucca cruzando os braços.
- Eu conheço a Catedral como nenhum de vocês sonharia em conhecer. - Ela parecia orgulhosa do que dizia. - Cresci dentro daquela igreja e sei suas passagens secretas, caminhos rápidos e saídas invisíveis. Além do que, também sei como entrarmos sem ser pelas portas que provavelmente estarão sendo vigiadas.
Vincent sorriu de canto, sua feição de admiração e orgulho para com a menina não podia ser escondida. Ele assentiu.
- Então você irá. - Declarou o vampiro. - Irá guiar os outros dentro da igreja, para que cheguem até Anthony o mais rápido possível.
Lucy acenou a cabeça concordando com Vincent e agradecendo sua confiança.
Era um plano audacioso e muitas coisas podiam dar errado, mas as circunstâncias exigiam aquilo. Muitos não sairiam de lá com vida e, alguns, não esperavam viver depois daquilo. O medo e a ansiedade nunca foram tão reais antes como naquela hora. O início de uma nova era viria ao anoitecer. Uma era desconhecida à qual nenhum deles esperava.

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora