Capítulo 26 - Uma Luz na Escuridão

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A fogueira no meio da clareira dava um ar acolhedor para os viajantes recém chegados. Vampiros de vários lugares estavam envolta da fogueira, sentados e distraídos. Homens e mulheres, crianças e vampiros mais velhos, de diferentes raças e diferentes culturas. Juntos em harmonia. Foi como um vislumbre do passado, quando a caça aos vampiros não existia e eles viviam felizes e seguros em seus lares. Mulheres de cabelos longos e esvoaçantes dançavam ao redor do fogo, reverenciando as estrelas e exibindo uma beleza mortal, com olhos afiados e movimentos sutis.
-Bem vindos, nobres visitantes. - Disse um vampiro de cabelos louros escuros e cacheados. - Meu nome é Louis e venho para recebê-los em nosso vilarejo.
- É um prazer conhecê-lo, meu caro. - Respondeu Vincent, estendendo a mão para cumprimentar Louis. - Somos viajantes de Paris. Um de nossos companheiros esteve aqui há pouco tempo.
- Sim. Eu me recordo. - Louis reconheceu Tommy entre os vampiros. - Meu senhor, Sir Vladimir, os aguarda.
Louis conduziu os viajantes pelo vilarejo até uma pequena tenda vermelha. Ofereceu sangue de animal fresco a eles e depois levou Vincent até uma tenda maior, onde Sir Vladimir o aguardava. Louis anunciou a entrada de Vincent e logo em seguida os deixou sozinhos, por ordem de seu senhor.
-Sir Vladimir, agradeço por nos receber tão cordialmente em seu vilarejo. - Agradeceu Vincent.
- Agradeça a seu amigo. - Uma voz áspera mas agradável como uma brisa num dia quente veio do fundo da tenda. - Ele foi realmente muito insistente.
Um homem alto, com olhos vermelhos e profundos como o mais profundo oceano escuro, cabelos castanhos lisos e longos e uma feição um tanto enigmática como o tempo. Sir Vladimir se aproximou de Vincent, com passos sutis e sem pressa, segurando um cálice de prata.
Sir Vladimir era um vampiro de gostos singulares. Para ele, os humanos nada mais eram do que a praga do mundo, a escória que assombrava os velhos vampiros, com suas armas mortais e suas palavras santas. Os hipócritas assassinos que matavam aqueles que precisavam sobreviver.
Alguns diriam que não passava de arrogância. A visão de um vampiro ancião no novo mundo. Ele matava indiscriminadamente. Para ele, todos eram iguais e tinham o mesmo sabor. O sabor da insaciedade. Daquilo incapaz de preencher e ser preenchido.
O coração dos vampiros não possui grandes finalidades. Alguns só batem e ecoam dentro dos peitos ocos, mas o coração de Sir Vladimir batia para lembrá-lo de que um dia ele palpitou de alegria por alguém. O coração do velho vampiro batia com uma saudade que não cabia em seu peito.
-Seu homem realmente instigou a minha curiosidade. - Ele bebeu o líquido que estava dentro do cálice. - Vampiros e padres coexistindo em Paris. Diga-me, como isso funciona?
- Não funciona, meu senhor. - Vincent disse pesaroso. - Vivemos escondidos como parasitas sob a cidade.
- Entendo. - Ele balançou a cabeça de maneira sutil. - Não imaginava que de fato fosse uma relação de fácil convivência.
O vampiro deu meia volta com passos leves e foi em direção a uma cadeira, próxima de um candelabro com seis velas. Ele fez um gesto com a mão, pedindo que Vincent se aproximasse e sentasse na cadeira ao seu lado. Ele obedeceu e andou em silêncio até a cadeira.
-Imagino que queiram abrigo em nosso vilarejo.
- Na verdade não, meu senhor. Queremos vossa ajuda.
- Ajuda? Com o que?
- Estamos sob ameaça. Não apenas nós que vivemos em Paris, mas toda a raça de vampiros. - Vincent pigarreou. - Padres nos caçam incansavelmente dia e noite com suas armas e sua falsa ideologia. Acreditam que somos o mal no mundo. Os filhos do diabo, enviados para matar toda a raça humana.
- Os homens... - Ele suspirou. Seus olhos pareceram se perder brevemente. - Houve um tempo em que eram eles quem nos temiam. Agora olhe só a ironia: somos nós que os tememos.
- Lembro-me de um tempo bom e pacífico, onde nenhum de nós corria perigo ou temia os homens. Mas o fanatismo cego faz os humanos acreditarem que são os escolhidos de Deus para expurgar o mal da terra e que o desconhecido é o mal.
Sir Vladimir ficou em silêncio. Vincent imaginou por longos minutos o que o vampiro estava pensando. Parecia tão imerso em seus pensamentos que sequer percebeu que parecia rude.
-Senhor? - Chamou Vincent.
- Sabe, sua voz me é familiar. - Disse o vampiro, finalmente. - E agora, olhando seu rosto sobre a luz, tenho certeza de que não é um estranho. Ajude-me a lembrar.
Vincent sorriu ligeiramente.
-Já faz muito tempo, meu senhor. - Ele disse. - Este vilarejo foi o meu lar por muitos anos antes que eu partisse para Paris. Meus pais eram Pierre e Johanna. Eles me criaram aqui.
- Sim. - Ele parecia se lembrar. - Agora eu me recordo de um menino astuto que seguia os pais o tempo todo. Se minha memória não falha, você tinha um irmão, não tinha? Onde ele está?
- Meu irmão se perdeu há muito tempo. - Respondeu cabisbaixo. - Não seria capaz de reconhecê-lo mesmo agora.
- Entendo. - Sir Vladimir cruzou as pernas. - Parece que as pessoas desse vilarejo tem o péssimo hábito de se perderem.
- Se refere a ela, não é mesmo, senhor?
- Lembra-se dela, meu caro?
- Uma mulher como ela é difícil de esquecer.
- Sim...
Mais uma vez, Sir Vladimir parecia estar imerso em sua própria escuridão. Seus olhos vermelhos olhavam para a chama fraca das velas, mas sua atenção estava longe, vagando no escuro.
-Mas seu legado continua, meu Senhor.
- Como? - Seus olhos carregavam agora uma surpresa abrupta.
- Há alguém que carrega os olhos doces dela e os cabelos dourados como o alvorecer.
- De quem está falando?
- Senhor, sua filha teve uma criança. Há dezessete ela deu à luz a uma menina. Seu legado.
- Impossível. - Vladimir estava atônito. - Minha Elizabeth?
- Sim, senhor. A menina é fruto do amor de duas raças diferentes. Nascida no outono em segredo.
- Como pode ter certeza disso? Como? - Ele estava visivelmente atordoado com aquela revelação. Sir Vladimir nunca soube da existência de sua neta, sequer sabia que a filha havia estado grávida.
- Eu a vi com meus próprios olhos, senhor. Uma menina linda, como se o próprio sol a tivesse esculpido. Tão parecida com sua mãe. A semelhança é assustadora.
- Como a conheceu?
- Receio que não posso responder a essa pergunta sozinho. - Vincent levantou-se rapidamente da cadeira. - Permita-me chamar um de meus homens. Aquele que é responsável pela minha descoberta.
- Chame-o sem demora. - Disse em um tom ansioso.
Vincent assentiu e saiu da tenda. Foi em direção da fogueira, onde avistou seus homens observando as mulheres dançando ao som da flauta e do alaúde.
-Anthony. - Ele o chamou tocando levemente em seu ombro direito. - Venha comigo.
O vampiro levantou-se e seguiu seu companheiro até a tenda de Sir Vladimir.
-Escute-me, - Sussurrou. - antes de entrar, preciso que saiba que suas palavras podem ter efeitos positivos ou negativos. Tome cuidado com o que diz.
- Eu não entendo. - Anthony estava confuso.
- Apenas faça o que lhe digo.
- Quem está aí dentro?
- Um homem. - Vincent suspirou. - Um homem velho e machucado.
Anthony engoliu seco. Sentiu um frio subir pela sua espinha e terminar em seu pescoço. Vincent entrou na tenda e Anthony o seguiu. Estava escuro e havia apenas uma fonte de luz no meio de tudo. Foi como se eles tivessem adentrado na mente daquele vampiro sentado na cadeira.
-Este é o homem? - A voz de Vladimir ecoou.
- Sim, meu senhor. - Respondeu Vincent.
- Aproxime-se. - Ordenou suavemente.
Anthony olhou para Vincent, que com um gesto positivo o incentivou a ir até o vampiro. O jovem andou cuidadosamente, sem movimentos bruscos. Ao se aproximar, viu um vampiro imponente, mas, de alguma forma, vulnerável. Sir Vladimir olhou para cima e viu Anthony à sua frente, nervoso. Sorriu de maneira contida, talvez divertindo-se ao perceber seu nervosismo.
-Não tenha medo. - Disse. - Sou só uma sombra do que já fui, uma lembrança do que já representei. Mas agora, estou cansado demais, velho demais. Sente-se, meu jovem.
Anthony obedeceu sem nada dizer. Olhava inquieto para Vladimir, esperando por algo que nem mesmo ele sabia o que era.
-Seu amigo me disse que você é capaz de responder minha pergunta.
- Espero que sim. - Disse apreensivo.
- Como a conheceu? - Ele foi direto ao assunto.
- Perdão, mas de quem o senhor está falando?
- De minha neta. A filha da minha filha.
- Receio ainda não saber de quem o senhor está falando.
- Lucy. - Vincent disse. - Ele está se referindo a senhorita Lucy.
Anthony arqueou as sobrancelhas. Estava surpreso com aquilo.
-Eu não sabia que ela era sua neta. - Respondeu. - Na verdade, há muito que eu ainda não sei sobre ela.
- Me conte o que sabe. Conte como ela é e como a conheceu.
- Ela... - Anthony suspirou e um sorriso singelo surgiu em seus lábios ao lembrar de Lucy. - Acredito que ela seja um anjo enviado por Deus para andar entre nós, criaturas simplórias. Ela salvou a minha vida e meu coração pertence a ela e somente a ela. Uma mulher extraordinária, doce, astuta, gentil e bela.
- Fala como um homem apaixonado. - Disse Sir Vladimir.
- Eu a amo, meu senhor. - Ele admitiu com firmeza. - A amo mais do que a minha própria vida.
- O amor é o mais perigoso dos sentimentos, meu rapaz. Ele nos cega e nos rouba a razão. - Vladimir levantou-se da cadeira, indo em direção a uma mesa no canto oposto, onde havia um recipiente de vidro e prata com um líquido vermelho dentro. Serviu um pouco mais em seu cálice e bebeu. - A minha doce menina era tão alegre, tão cheia de vida. Não havia nada nesse mundo que a fizesse ter medo. Era corajosa e curiosa, vivendo cada dia intensamente. Todos a amavam, todos a admiravam. Ela era o meu mundo. Um dia ela veio até mim com os olhos marejados, estava trêmula e parecia amedrontada. Aquilo me alarmou, pois ela nunca teve medo de nada. Ela me disse que estava amando e que independentemente de minha aceitação ou não, ela não desistiria do homem que amava. Me revelou então que estava falando de um homem humano. Eu ri e desdenhei dela e de seu amor. Fui um tolo, agora eu sei disso. Ela saiu magoada desta mesma tenda e eu nunca mais a vi. Minha Elizabeth fugiu com seu amado na calada da noite.
Sir Vladimir não conteve as lágrimas. Elas escorriam de seu rosto como um rio rubro que corre para desaguar no mar.
- Sinto muito por isso. - Ele se desculpou limpando as lágrimas vermelhas que teimavam em escorrer de seus olhos. - Eu deveria ter ido atrás dela, deveria... A minha filha só queria ser feliz ao lado do homem que amava. Era o meu dever como pai permitir sua felicidade e não tentar privá-la disso. Eu a perdi para sempre por causa de meu orgulho e teimosia. Tudo o que eu queria era poder ver seus olhos vívidos e alegres novamente.
- Eu sinto muito por sua dor. Posso imaginar o que se passa em seu coração. - Anthony se aproximou. - Mas o senhor pode se redimir, conhecendo a filha de sua amada Elizabeth.
- E onde ela está? Como ela está?
- Ela foi criada por um frade de Notre Dame e... - Anthony sentiu um nó em sua garganta antes de falar. - No entanto, ela não sabe de seu passado. Era só um bebê quando o frade a adotou.
- Mas seu sangue fala mais alto. Ela deve conhecer sua família e viver com os seus.
- Não é tão simples, senhor. Ela está noiva.
- Noiva?
- Sim. Noiva de um caçador de vampiros. Oliver Dauphin.
Foi como se o chão tivesse se aberto sob os pés do vampiro.
-Os Dauphins são o pior tipo da escória humana. - Lamentou Vladimir. - Como ela pôde cair nos braços de tão vil inimigo?
- Eu tentei persuadi-la a não aceitar esse noivado, mas ela é uma filha obediente que coloca a felicidade de seu pai. - Anthony olhou com pesar para Vladimir, cujos olhos ainda estavam marejados. - Talvez, se ela souber da verdade, possa escapar deste casamento.
- Assim eu espero, meu jovem. Eu já perdi minha amada filha, não posso perder minha neta também.
Vladimir surpreendeu Anthony ao dar-lhe um caloroso abraço. Nem mesmo Vincent esperava aquele gesto do vampiro.
- Ao menos agradeço por ela ter você. Obrigado por amá-la.

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