Capítulo 31 - Infortúnio

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Oliver e Lady Dauphin estavam hospedados em quartos especialmente preparados para eles no Palácio da Justiça de Paris. Mãe e filho eram tratados como os próprios reis da França.
- Esta cidade cheira a urina e fezes. - Reclamou Lady Dauphin entortando o nariz. - Quando poderemos voltar para casa, meu filho?
- Em breve, mamãe. - Disse Oliver sentando-se na cadeira alta de madeira do quarto de sua mãe. - Muito em breve. Depois da festa de noivado e da cerimônia, não precisaremos pisar nesta cidade nem tão cedo.
- Ainda está decidido a se casar com aquela menina? - Perguntou com uma expressão de desdém.
- Sim. - Ele confirmou balançando a cabeça e com um olhar sombrio. - Mas acredito que não vamos ter que aguentá-la por muito tempo.
- Como assim?
- Tudo ao seu tempo, mãe. Aqui não é o melhor lugar para discutirmos isso. - Ele suspirou fundo e levantou rapidamente. - Agora, eu preciso ir.
- Aonde vai, querido?
- A casa de minha noiva. - Falou com desprezo. - O frade Harmon passou mal ontem e está repousando. Devo lhe fazer uma visita como sinal de boa fé.
- Você escolheu a escória. - Lady Dauphin indo em direção a Oliver e limpando sobre seus ombros. - Precisa lidar com as consequências.
- Não será por muito tempo, mãe. Eu lhe garanto.
Andando pelas ruas, Oliver usava sua máscara de bondade e sutileza, mas lá no fundo de seu coração, ele odiava aquelas pessoas. O modo como elas andavam, falavam e agiam, aquilo o irritava e o fazia querer voltar para casa e se lavar, como se até sua alma estivesse suja, imunda como os esgotos que fediam a céu aberto.
Virando a esquina, colocou um sorriso cordial em seus lábios e cumprimentou o guarda que estava de pé na frente da porta. Ele bateu três vezes sem demonstrar ansiedade e aguardou que a porta fosse aberta. Lucy a abriu vagarosamente, como se ela pesasse uma tonelada. Quando olhou para frente e viu Oliver de pé sorrindo ali fora, sentiu um enjoo repentino brotar em seu estômago e uma vontade incomoda de vomitar.
-Oliver. - Disse com mais surpresa do que gostaria. - O que faz aqui?
- Soube que seu pai não está bem. - Seu rosto parecia ser sincero, mas Lucy sabia que aquilo não passava de uma máscara. - Vai me deixar entrar ou ficarei aqui de pé a manhã toda?
A contragosto, Lucy abriu mais a porta e permitiu a passagem de Oliver. Uma vez a sós com ele na sala de sua própria casa, ela se sentiu invadida, como se aquele lugar não fosse mais seguro para ela. Ao entrar, ele profanava sua paz. Era o que ele queria. Desestabilizá-la em qualquer lugar e em qualquer momento.
-Espere aqui. - Ela pediu com receio. - Verei se ele está acordado.
- Tudo bem. - Oliver cruzou os braços na altura do peito.
Ela andou vacilante, como alguém que anda sobre a corda bamba. Não queria que ele visse seu pai, não queria que ele falasse com seu pai, não o queria em sua casa. Olhou para dentro do quarto e os olhos de seu pai encontraram os seus.
-Sim? - Perguntou o frade ao vê-la parada como uma estátua.
- O... Er... Oliver veio vê-lo pai. - Ela gaguejou. - Está disposto?
- Sim, sim. - Ele pareceu alegre. - Mande-o entrar.
Lucy chamou Oliver e o guiou até o quarto do frade.
-Senhor Frade. - Disse preocupado. - Como está? Fui pego de surpresa com a notícia de seu mal estar súbito. Espero que não seja nada sério.
- Meu bom rapaz. - O Frade tocou sua mão com segurança. - Estou bem agora. É apenas este meu velho coração que começa a falhar.
- Deus. - Ele franziu as sobrancelhas. - Rezo por sua melhora o mais breve possível.
- Eu sinto muito que isso esteja acontecendo na semana da festa de noivado. - Lamentou o frade.
- Não se preocupe com isso, meu bom frade. - Disse de forma reconfortante. - Caso não melhore a tempo, adiamos o dia.
- Não. - Declarou e logo em seguida tossiu seco. - Não poderia fazer isso com o senhor e com minha filha. Deus irá me curar a tempo.
- Assim esperamos, certo minha querida? - Ao virar-se para Lucy, Oliver a olhou de maneira cínica.
- Sim. - Respondeu com um nó em sua garganta.
- Vou rezar pelo senhor. - Oliver deu-lhe um tapinha reconfortante na mão e colocou-se de pé. - Irei agora para que o senhor possa descansar.
- Obrigado pela visita. - Agradeçeu com a voz falha. - Mande minhas lembranças à sua mãe.
- Mandarei. - Ele sorriu.
Oliver saiu dos aposentos do frade e com passadas leves e longas se pôs de pé na sala, esperando Lucy que vinha logo atrás.
-Espero que não aborreça seu pai com tolices. - Ele sussurrou aproximando-se dela, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha de Lucy. - Talvez você queira que nosso noivado seja adiado, mas cedo ou tarde ele acontecerá e você não pode impedir.
Lucy olhava bem fundo nos olhos de Oliver. Naquele momento foi como se a raiva se sobressaísse do medo. Seus olhos em fúria queimavam como piras funerárias. Oliver a olhou mais uma vez com cinismo. Caminhou até a porta e por ela saiu sem olhar para trás. A menina suspirou aliviada quando ele se foi, mas ainda sentia sua sombra negra pairando incessantemente sobre sua cabeça como a pior das tempestades.
Uma angústia sufocante e mórbida tomou conta de Lucy. Uma agonia que subia fi seu estômago, passava por suas entranhas e atravessava sua garganta, amargando sua boca. Um sabor quase como o de um cadáver inundava seu céu da boca. Sentia-se mal, muito mal.
Faltavam só alguns dias até a sua festa de noivado e ela podia sentir as correntes invisíveis que estavam a sua espreita, começarem a enlaça-la. Era um jogo cruel e sádico no qual o destino estava a colocando. Mas havia uma dor maior ainda, uma dor que ela não poderia evitar e, a qualquer momento, ela rasgaria seu peito sem misericórdia.
Lucy aguardou a noite em que Anthony voltaria a sua casa para buscá-la como quem espera por um julgamento. Duas noites após o mal estar de seu pai, ela sentiu uma forte intuição. Tinha certeza absoluta que naquela noite Anthony viria ao seu encontro. Lucy tinha essas intuições que vez ou outra afloravam nela, a fazendo quase "prever" o que estava para acontecer. Um dom que ela nunca soube explicar.
Naquela noite, ela preparou o jantar de seu pai como vinha fazendo nos últimos dias, mas, por garantia, deu-lhe um chá com uma erva que a freira Dominic a havia entregue. A erva era medicinal, fazia aquele que a inserisse dormir tranquila e profundamente. Lucy sentiu um aperto em seu peito ao entregar o chá a seu pai, mas não podia correr nenhum tipo de risco.
O frade logo adormeceu. Lucy fechou a porta do quarto do pai e depois a sua e aguardou pela chegada de Anthony, pois sabia que ele viria logo.
Fazia frio naquela noite. O inverno estava mostrando suas garras congeladas e ventos cortantes. O barulho do vento soprando pelas ruas e becos era como o uivo melancólico de um fantasma acuado, assombrado pela penumbra da noite fria.
Sem surpresa, ela levantou o olhar ao ver a porta da janela abrir vagarosamente. Anthony entrou sorrateiramente, passando com cautela pela pequena janela.
- Vim o mais rápido que pude. - Ele disse com um sorriso singelo em seus lábios. - Está tudo arranjado. Ainda não tem nada pronto? - Indagou a fitando.
- Há algo que preciso lhe dizer. - Sua voz era pesarosa.
- Diga-me e eu a ouvirei.
- Não sou boas notícias. - As palavras pareciam pesadas demais dentro de sua boca.
- Estou assustado com sua expressão. O que aconteceu? - Sua feição de felicidade logo se transformou em feições receosas.
- Meu pai está muito doente. Ele não está nada bem e... - Seus olhos ficaram marejados e sua voz parecia que iria falhar. - Eu me casarei com Oliver.
- Não, não pode fazer isso. - Ele suplicou enquanto as lágrimas brotavam em seus olhos. - Não pode entregar-se a àquele homem em matrimônio.
- Não tenho outra escolha...
- Escute-me, sei que quer ver todos aqueles que a rodeiam felizes, mas já se perguntou se eles se sacrificariam dessa maneira por você? - Disse de maneira enérgica. Como se usasse todas as suas forças para falar. - Tem que parar de colocar a felicidade dos outros na frente da sua. pelo menos, uma vez na vida, permita-se a fazer o que a faz feliz.
- Eu faria qualquer coisa pelo meu pai, minha infelicidade não chega aos pés do sacrifício que ele enfrentou todos esses anos por mim. - Lucy pareceu um pouco irritada, mas sua voz ainda carregava pesar.
- Acredite-me quando digo que não duvido disso, mas não posso deixá-la cometer esse erro. - Ele supirou, aproximou-se sutilmente de Lucy e pouso sua testa sobre a dela. Como se quisesse que ela sentisse seus sentimentos. - Venha comigo e não olhe para trás. Vamos desbravar tudo o que há neste mundo. Seremos felizes um ao lado do outro. Viveremos, só eu e você, por toda a eternidade. Nada de mal a atingirá e a tristeza jamais fará morada em seu coração. Sem você ao meu lado, não sou capaz de viver.
- Não faz ideia do que está me pedindo. Mesmo que haja toda a felicidade ao seu lado, eu não me perdoaria por deixá-lo nesse estado. - Ela se afastou dele e sua voz embargada começou a ficar firme. - E não há nada que possa dizer ou fazer que me fará mudar de ideia. Eu sinto muito por isso...
- Suas palavras me ferem como um punhal sobre meu peito, mas não há a menor possibilidade de que eu a deixe...
- Eu peço que vá e esqueça-me. - Suplicou.
- Não há a menor possibilidade de que isso aconteça. Nunca a deixarei.
- Eu o imploro que vá...
- Deixá-la é o mesmo que a morte para mim...
Lucy fitou os olhos de Anthony. Seu olhar era firme e possuía tristeza, mas princesa confiança. O vampiro entendeu que ela estava certa do que dizia e mesmo que tentasse, suplicasse e implorasse, ela não cederia. Embora estivesse decepcionado e aborrecido, naquele momento ele a admirou como nunca. Ela era corajosa, ele não podia negar e, de fato, amava o pai mais do que tudo no mundo. A admirou pois ela não estava sendo egoísta e pensando apenas em si mesma. Lucy era essa criatura incrível. Gentil, doce e honesta, mas ao mesmo tempo forte, corajosa e determinada.
Em silêncio, Anthony andou alguns passos para perto da garota, seu olhar visivelmente decepcionado atravessou o olhar determinar dela.
- Isso não é um "adeus". - Ele disse.
O vampiro deu meia volta e andou sem olhar para trás. Ele não havia desistido. Não era capaz daquilo e nunca seria, mas julgou que naquela circunstância, ele não podia fazer nada para convencê-la.

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora