Capítulo 37 - A hora mais sombria

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Os eventos que aconteceram naquela noite em Paris, ficaram para sempre marcados na memória daqueles que o testemunharam. Pois foi como uma batalha santa, o puro contra o impuro, o devasso contra o honrado, o bem contra o mal. O que os olhos curiosos não sabiam, era que o bem e o mal não eram aqueles que eles pensavam.
Mais de cem soldados estavam ao redor da catedral, vigiando, guardando cada entrada.
Entre as duas torres no nível superior, estava o clero e o vampiro. Preso em uma estrutura de madeira em formato de "x", Anthony tinha seus braços e pernas presos por algemas de ferro grosso e pesado, unidos por correntes. Estava ferido e quase inconsciente. Sua visão embaçada o permitia ver muito pouco do que ocorria ao seu redor, mas seus outros sentidos ainda estavam afiados, como se não tivessem sido tocados ou abalados. Ao lado da estrutura de madeira, haviam lenhas para uma fogueira que seria acesa logo mais.
- Acha que eles virão? - Perguntou Gerard olhando por entre as gárgulas da galeria.
- Eles já estão aqui. - Disse Frederic fitando o horizonte onde o sol se escondia rapidamente.
Frederic tinha razão. Quando a lua veio e as estrelas encheram o céu escuro sobre suas cabeças, vampiros andaram em direção a Catedral. Calmos e sem pressa, eles caminhavam, indo ao encontro de seu destino nas portas da igreja. Alguns sequer conheciam aqueles por quem lutariam, sequer conheciam aquele que estava aprisionado, mas sabiam que havia algo em comum entre eles ali: estavam em busca de paz. Aquela luta selaria a paz que há muitos anos eles desejavam. A morte iminente, frente a frente com eles a cada passo que davam, o horror de um destino desconhecido e de um desfecho cheio de incertezas. Não havia mais volta. Não havia mais para onde ir.
Embora o temor fosse latente e presente, olhos curiosos não deixaram de olhar pelas frestas das portas e janelas. Estavam todos em suas casas, trancados em tavernas. Não era uma luta para aqueles mortais, tão comuns e temerosos. Era uma luta para mortais santos, cujos adornos santificados seriam suas armas e sua fé seus escudos.
O som das espadas sendo tiradas de suas bainhas eram o único som presente naquela cidade fantasma. Não havia grilos, cigarras ou rãs fazendo sons. Sequer o vento se atreveu a emitir qualquer tipo de som. Apenas espadas e respirações. Os vampiros podiam ver o sangue percorrendo cada centímetro do corpo dos mortais. Da ponta da cabeça até seus pés. Sangue. Muito sangue seria derramado ali. Sangue era vida, mas naquela hora sombria, o sangue significava morte.
Então veio o primeiro som do tilintar de duas espadas se encontrando uma contra a outra. E depois mais e mais. Gritos de dor, gritos ferozes, gritos de horror se misturavam no ar.
Os membros do clero foram até o parapeito averiguar a batalha que acontecia no pátio em frente da Catedral.
- Há mais deles do que eu podia imaginar. - Disse Julian, parecendo que estava nervoso.
- Agora não tem como voltar atrás. - Declarou Gerard. - Acendam a fogueira.
Dois cavaleiros que ali estavam, acenderam tochas e em seguida atearam fogo na lenha. Em poucos minutos, o fogo consumiu a madeira e as chamas alcançaram quase dez metros de altura.
- Veja, demônio. - Disse Gerard pegando o rosto de Anthony de maneira bruta. - Esta é uma prévia do que o aguarda na vida após a morte.
Ainda com os olhos pesados e a visão turva, Anthony levantou o olhar e pôde sentir o clarão da imensa fogueira penetrarem seus olhos.

O silêncio era ainda mais perturbador longe de onde tudo estava acontecendo. Entre tumbas e mausoléus, criptas e lápides, o silêncio mórbido predominava. Os mortos silenciosos e em paz, que nada podiam fazer, agora eram testemunhas de um plano secreto em ação.
Violet, Benjamin e Sthephan eram guiados por Lucy. A menina olhava tumba por tumba, em busca de uma em específico. Quando era apenas uma criança de oito anos, freira Dominic havia mostrado a Lucy saídas secretas que haviam dentro da Catedral. Embora Lucy nunca imaginasse que precisaria daquilo um dia, o conhecimento se mostrou oportuno naquela hora.
- Diga-me de novo. - Disse Sthephan. - O que exatamente estamos procurando?
- Há uma tumba que nos levará por dentro das catacumbas até a sacristia da igreja. - Ela disse ainda olhando com atenção para as tumbas ao seu redor.
- Acredita que eu nunca pisei em uma igreja? - Revelou Sthephan.
- Me surpreenderia se você já tivesse ido em algum momento. - Respondeu Benjamin.
- Será que meus pés queimarão ao pisar em solo sagrado? - Quis saber o vampiro de cabelos ruivos.
- Caso o chão não o queime, eu mesma o queimarei. - A voz irritada de Violet ressoou em seus ouvidos. - Leve isto mais a sério.
- Já disse que não lido bem com o nervosismo. - Resmungou.
- Encontrei! - Exclamou Lucy. - Ajudem-me a mover a tampa de pedra.
Sem muito esforço, os três vampiros tiraram a tampa de mármore de seu caminho. Os quatro haviam levado tochas apagadas consigo, antes de entrarem na catumba, um por um, eles acenderam as tochas, utilizando o fogo de outra tocha já acesa de uma cripta próxima.
Além da escuridão que era afugentada pela luminosidade das tochas, as paredes eram úmidas e um líquido viscoso escorria das paredes.
- Posso ouvir corpos caindo no chão sobre nós. - Disse Benjamin com um olhar enigmático.
- Sinto o cheiro do sangue se misturando lá em cima. - Completou Sthephan.
Estavam passando pelo pátio, onde toda a luta estava concentrada. Os vampiros podiam ouvir tudo o que acontecia longe de seus olhos, sentindo a dor e o desespero de seus iguais e sem poderem fazer nada para ajudar.
Continuaram pela catacumba por mais alguns minutos até que Lucy parou.
- Aqui em cima. - Ela disse erguendo a tocha. - A sacristia fica aqui em cima.
Benjamin, Violet e Sthephan iluminaram mais acima e viram que havia um piso solto acima deles.
- Eu subo primeiro. - Disse Benjamin.
Escalando a parede sem nenhuma dificuldade, ele moveu o piso para o lado. Subiu pela abertura e estendeu a mão para baixo.
- Venham as duas agora.
Lucy pulou para tentar alcançar a mão de Benjamin, mas não conseguiu. Sthephan colocou sua tocha no chão, pegando Lucy pela cintura e a elevando até estar no alcance de Benjamin, que a puxou para cima. Sthephan virou-se para Violet, oferecendo a mesma ajuda, mas a vampira declinou. Ela pulou bem alto e segurou a mão de Benjamin que a ajudou a subir. O último a subir foi Sthephan, da mesma maneira que Violet, ele apenas pulou e segurou na mão de Benjamin para conseguir subir. A sacristia estava em completa penumbra, apenas um pequeno candelabro estava com as velas acesas no canto do lugar.
- Sinto cheiro de sangue. - Violet farejou o ar como quem sente um doce aroma. - E está perto.
Os vampiros desembainharam suas espadas, mas logo viram que não havia necessidade para aquilo. Um corpo estava caído no chão, imóvel, com uma poça de sangue ao seu redor. Uma expressão de desespero e horror tomou conta do rosto de Lucy ao ver que o cadáver era a freira Dominic.
- Não... - Balbuciou. - Não.
Lucy ajoelhou sobre o sangue e tomou o corpo da freira em seus braços. Ela estava gelada e rígida, os olhos cerrados e a boca silenciosa. Ela abraçou o corpo da freira com tamanho desespero, agarrando-a como uma tentativa frustrada de aquilo parecer não ser real. Sentiu a ferida aberta na barriga da freira, por onde todo aquele sangue havia escapado.
- Que criatura cruel e vil foi capaz de cometer tamanha atrocidade? - Dizia a menina enquanto chorava desesperadamente. - Que terrível criatura foi capaz de roubar a vida de tão bondosa mulher?
Os vampiros a olhavam com pena. Viam que o sofrimento de Lucy era genuíno e angustiante. Podiam sentir seu sangue ferver por dentro. Em silêncio, eles esperavam que ela se despedisse da freira morta.
- Quanto sangue... - Ela disse ao tocar na ferida aberta. - Que morte horrenda e sofrida veio ao encontro de tão querida irmã. - Lucy começou a soluçar e as lágrimas pareciam ganhar mais intensidade a cada segundo. - A senhora disse que logo estaríamos juntas novamente... Foi a última coisa que me disse. Por favor, não me deixe... Eu preciso da senhora, mãe. Não me deixe.
Violet se aproximou vagarosamente, ajoelhou-se ao lado de Lucy e pôs sua mão sobre suas costas, como que para confortá-la.
- Eu sinto muito por sua perda, Lucy. - Lamentou. - Mas nós precisamos continuar.
- Só mais um minuto. - Sussurrou. - Deixe-me abraçá-la por só mais um minuto.
Violet assentiu com lástima em seus olhos.
Lucy balançava-se com a irmã Dominic nos braços. Em sua mente, era como quando a freira a ninava em seus braços até que ela caísse em um doce e profundo sono.
- Adeus, minha doce irmã. - Deu-lhe então um beijo afetuoso em sua testa fria. - Sentirei sua falta até o último dia de minha vida.
A menina levantou com um olhar assombrado, quase tão cadavérica quanto a própria freira morta. Os vampiros nada disseram, pois sabiam que nenhuma palavra que saísse de suas bocas iria confortá-la naquele momento.
Os quatro seguiram com cautela dentro da Catedral, que estava vazia. Acreditavam que toda a guarda estava concentrada nas entradas das torres. Mas não podiam subestimar o seu inimigo. Subiram o primeiro lance de escadas indo para o piso superior da Catedral. Vazio. As escadarias circulares que os levariam a torre sul era íngreme e não dava para saber o que vinha à frente, podendo ser pegos de surpresa a qualquer momento. Sthephan e Benjamin iam na frente com as espadas empunhadas, Violet vinha logo atrás e Lucy por último. O intuito dos vampiros era conseguir fazer Lucy chegar ilesa até Anthony, eles eram seus guardiões e lutariam por ela.
Dois soldados apareceram nas escadarias. Rapidamente tiveram suas gargantas cortadas com tamanha habilidade pelos dois vampiros. Apressaram-se e, enquanto subiam, mais e mais cavaleiros vinham ao encontro deles. Benjamin e Sthephan ficaram para trás, abrindo caminho para Violet e Lucy, que prosseguiram às pressas. O tempo era crucial e ele estava acabando. À medida que se aproximavam da galeria das gárgulas, podiam sentir o cheiro forte da fogueira dominar o ar. Será que havia ainda tempo?
Como fortes ventos, os quatro chegaram ao mesmo tempo na galeria, o espaço aberto entre as torres norte e sul da Catedral. Os olhos dos presentes voltaram-se para aqueles que haviam acabado de chegar. Surpresa, era sem dúvidas a expressão que estava estampada em suas faces. Os dois cavaleiros que estavam ao lado de Anthony correram com suas espadas empunhadas em direção aos vampiros. Gerard, Julian, Harmon e Frederic fizeram o mesmo. Os três vampiros tinham consciência de que os homens do clero faziam parte da família de Lucy e não os matariam como mataram os cavaleiros que cruzaram seu caminho.
Os olhos inquietos de Lucy buscaram por Anthony. Ao vê-lo, ela correu até ele. Viu de perto sua degradação e o quanto ele estava ferido, quase inconsciente.
- Meu amor. - Ela disse pondo sua mão sobre seu rosto. - Estou aqui.
- Estou no céu? - Balbuciou balançando a cabeça. - É um anjo que se encontra diante de mim?
- Não. - Ela disse com a voz embargada. - Sou eu.
A menina tentou arrancar o cadeado das correntes, mas não obteve sucesso. Passou então a procurar as chaves, mas não as achava em parte alguma.
- Lucy. - Chamou Benjamin, jogando um molho pesado de chaves que estava em um dos cavaleiros que havia acabado de matar.
Ela segurou as chaves no ar e com pressa abriu o cadeado das correntes que prendiam seu amado na estrutura de madeira. Anthony não tinha forças para firmar-se de pé e caiu sobre Lucy, que o segurou com toda a sua força, mas caiu por não aguentar o peso do vampiro.
- Anthony, - Ela chamou, subindo a manga de seu vestido. - venha. Beba meu sangue.
- Não. - Ele recusou virando a cabeça para o lado.
- Beba, meu amor. - Ela insistiu. - Sentirá novamente suas forças se beber meu sangue.
Ainda com a visão embaçada, o vampiro a fitou. Seu olhar era de relutância. Tinha medo de não conseguir parar depois que começasse. Tinha medo de beber mais além do que deveria e acabar matando-a.
- Beba. - Ela rasgou seu pulso com uma adaga que havia próxima deles.
O sangue vermelho e vivido de Lucy gotejou sobre os lábios de Anthony. Ele enfim cedeu e tomou o braço de Lucy para si, sugando todo o sangue que escorria de sua ferida recém aberta, de suas veias inundadas pelo néctar vermelho. Ele pôde sentir a força voltar a percorrer por ele, sua visão estava perfeitamente nítida agora e a fraqueza o deixara à medida que o sangue o alimentava. Mesmo começando a se sentir tonta, Lucy nada disse e permitiu que Anthony continuasse a saborear seu sangue. Abruptamente, o vampiro parou. Com uma expressão de satisfação em seus olhos e o sangue inundando cada centímetro de sua boca, ele tocou em seu rosto pálido. O rosto de um anjo esculpido de mármore.
- Meu anjo... - Disse com uma voz aveludada. - Meu paraíso.
Frederic estava caído próximo ao parapeito. Ele e sua besta não foram páreos para Sthephan e sua agilidade imortal. Aqueles vampiros eram diferentes dos vampiros que havia enfrentado até então. Eram mais determinados, mais fervorosos. Lutavam por um objetivo em comum e isso lhes dava mais força do que qualquer outra coisa.
Ele levantou a cabeça e olhou ao seu redor. Harmon ainda estava de pé, medindo forças com Benjamin e sua espada. Julian estava caído sentado no chão, arfando, cansado demais para continuar e Gerard estava caído a poucos metros de Julian, debruçado no chão. Seu olhar ansioso encontrou o jovem casal. Aquilo o consumiu até os ossos, pois não via Anthony e Lucy, via Elizabeth e Peter. Sua amada e adorada Elizabeth nos braços de outro homem, um homem inferior que não merecia seu amor.
- Isso acaba agora... - Balbuciou, levantando-se com toda a energia que ainda o possuía.
Frederic apertou o gatilho da besta, a flecha guiada por seu ódio foi certeira em seu alvo.
Lucy sentiu uma dor, algo perfurou sua carne e atravessou seu peito. Ela olhou para a ponta da flecha transpassando seu peito incrédula. A dor aumentou e ela sentiu suas forças se esvaindo de seu corpo numa velocidade descomunal. Anthony arregalou os olhos, assustado com que estava vendo. Segurou Lucy em seus braços quando a mesma pendeu para o lado como uma folha caindo da árvore.
- Lucy! - Ele gritou em desespero.
O barulho do tilintar das espadas cessou imediatamente. Todos olharam para Lucy, caída no braços de Anthony, com uma flecha atravessando seu peito. Estavam incrédulos com aquela cena. Espadas caíram no chão de tamanho abalo. Não havia mais luta. Acabou naquele instante.
- Meu amor, olhe para mim. Olhe para mim. - Ele implorava.
- Isto doi. - Ela resmungou.
Anthony gesticulou o ato de tirar a flecha dela, mas uma mão o deteve rapidamente.
- Se tirar a flecha, ela vai morrer de hemorragia. - Disse Violet.
Anthony a olhou com desespero. Não sabia o que fazer.
- O que você fez? - Gritou Harmon. - O que você fez, Frederic?
- Não haja como se importasse agora, Harmon. - Retrucou o padre. - Eu acabei com tudo. Era isso o que eu queria. Era isso o que todos queriam. Foi para isso que vivi toda a minha vida, para expurgar o mal da humanidade, para expurgar o demônio de volta ao abismo do qual ele saiu.
- Você atacou minha filha. - Harmon esbravejou. - Você enlouqueceu, Frederic.
- Ela não é a sua filha. - Defendeu-se gritando mais ainda. - Ela é filha do pecado. O sangue da profanação corre em suas veias e eu tenho o dever de pintar o chão com esse sangue, assim como fiz com o pai e a mãe dela.
- Do que está falando? - Perguntou Julian levantando-se vagarosamente.
- Há muito tempo eu carrego isso comigo. Esse sentimento, esse ódio. Mas enfim, eu acabei com isso. Findei a prole da mulher que deveria ter sido minha. - Ela gritava como um louco. - Deus do céu, como eu a amei. Ela deveria ter me amado de volta, mas não o fez... Escolheu outro, e desde aquele dia eu jurei matar cada vampiro, cada homem, mulher ou criança que vinhesse desse sangue impuro. Achavam que estavam seguindo as ordens de Deus? - Ele riu maquiavelicamnete. - Não, seus velhos tolos. Estavam seguindo as minhas ordens, os meus desejos. Mataram por minha causa, foram apenas peões em meu jogo. Satã é testemunha disso.
- Maníaco. - Disse Harmon incrédulo. - Louco, assassino.
- Tolos. Todos vocês são tolos e arderão no inferno comigo. - Sua voz rouca proporcionou uma gargalhada sombria de arrepiar os ossos. - E ela será a primeira a ir.
Num impulso, Anthony agarrou Frederic pelo pescoço, segurando seu corpo do lado de fora da construção, os pés de Frederic pendiam sobre o ar, sem o chão para se firmar.
- Vá em frente, garoto. - Disse de forma sádica. - Mate-me. É isso o que você quer.
- Eu deveria fazer isso. Matá-lo pelo o que fez com a minha raça. Matá-lo pelo o que fez a mulher que amo. - Anthony recuou, trazendo Frederic de volta a segurança do chão. - Mas isso só me faria ser igual a você. E nem eu e nem um outro vampiro é tão perverso a esse ponto.
Anthony o soltou e lhe deu as costas. Frederic tirou uma adaga de sua bainha, indo em direção ao vampiro, que rapidamente virou-se e o empurrou do parapeito com tamanha força, quebrando a estrutura.

Antes que chegasse ao chão, Frederic viu-se enlaçado por dois braços fortes que o puxaram, salvando-o da queda. O homem caiu no chão, olhou para cima e vislumbrou seu salvador.
- Eu deveria ter imaginado que era você. - Disse Frederic sem surpresa.
- Você não mudou nada, meu caro. - A voz doce de Vincent soou. - Continua com o mesmo ódio pesado em seu coração.
- Não há espaço para outro sentimento neste peito. - Disse levantando-se, olhando para Vincent de igual para igual. - O amor é para os fracos. O ódio é para os fortes que sabem sentí-lo e apreciá-lo.
- Está enganado. - Contestou. - O amor e o ódio andam juntos de mãos dadas, como dois amantes conflituosos. O mais valente dos homens é aquele que é capaz de cultivar os dois dentro de si e não permitir que isso reflita em seu julgamento externo.
- Em outras palavras, está me chamando de covarde.
- Não. É preciso coragem para cometer todos os atos deploráveis que você cometeu ao longo de sua vida.
- Essa é a natureza humana.
- Essa é a natureza do mal.
- E o que é o homem além da personificação do mal? - Frederic o rodeou. - Os verdadeiros anjos caídos. Assassinos, prostitutas, mentirosos, ladrões... Todos eles são o homem. Sempre o homem.
- Fala como o julgador da raça humana. Quem somos nós para julgar alguém além de nós mesmos, Frederic? - Vincent se aproximou dele de maneira serena, seus olhos traziam profundo afeto dentro deles. - Esse nosso destino trazido das sombras e mergulhado em desgraça precisa se findar. Que nosso destino seja apagado por nós mesmos do que por estranhos. Irmão, oh meu amado e estimado irmão, que nossas vidas encontrem seus descansos e neles possam se afundar em penitência eterna por nossos inúmeros pecados. Oh meu irmão, que a luz possa ser encontrada em nossas almas banhadas em trevas e que nosso sacrifício possa nos trazer o consolo do arrependimento.
Vincent estendeu seus braços e os enlaçou em volta de Frederic. O homem, ainda que desconfiado, aceitou o gesto de afeto que lhe era oferecido.
- Devemos ficar juntos, irmão. - Disse Frederic deitando sua cabeça sobre o ombro de Vincent.
- Que assim seja. - Disse Vincent com ternura.
Uma lâmina atravessou o corpo de Frederic e transpassou pelo corpo de Vincent. Ambos estavam unidos pela lâmina que o próprio Vincent cravou em seus corpos.
- Que eu possa vê-lo no inferno, meu querido irmão.
Com um impulso ele jogou a si próprio e a Frederic do parapeito do corredor da Catedral onde estavam. Unidos, eles chegaram ao chão dilacerados pela queda.

Lucy emitia sons de dor e desconforto, a flecha ainda estava em seu peito a impedindo de respirar. Ela podia sentir a dor agonizante junto com a fraqueza invadi-la como uma doença que corroi imediatamente.
- Resista. - Implorou Anthony. - Vamos tirar isso de você.
- Não... - Ela disse com a voz fraca. - Posso sentir a vida escapando de mim, posso sentir um frio gélido percorrer todo o meu corpo.
- Meu amor. - Anthony a tinha em seus braços, sentindo-a ficar cada vez mais fraca e gelada. - Você não vai morrer.
- Eu não me importo de morrer. - Ela disse com serenidade. - Ao menos, pude vê-lo mais uma vez.
- Não...
- Não lamente, pois tive uma vida feliz. Amei e fui amada incessantemente e isso me basta.
Anthony não foi capaz de segurar as lágrimas enquanto via a vida deixar Lucy vagarosamente, levando-lhe a cor e a luz de seus olhos.
- Salve-a. - A voz de Harmon surgiu dentre eles. - Por favor, ela é tudo o que tenho.
- Pai? - Sua voz fraca carregava surpresa.
- Deus está me castigando pelos meus pecados. - Disse ele com a voz trêmula, ajoelhando-se ao lado de Lucy e segurando sua mão. - Você, minha doce menina, é um presente de Deus. Um presente que eu não soube valorizar. E agora, eu gostaria que essa flecha estivesse atravessando o meu peito ao invés do seu. Você sempre foi uma menina doce, gentil e obediente. Eu tenho sorte por poder chamá-la de minha filha. - As lágrimas escorreram de seus olhos. - Perdoe-me. Perdoe-me.
- Não me peça perdão, papai. - Disse gentilmente. - Para perdoar alguém é preciso que haja mágoa no coração e eu não carrego mágoas suas dentro de mim. Eu o amo, pai.
- Eu a amo, minha linda garotinha. - Ele se debruçou e beijou sua testa com carinho. - Minha filha doce e amada.
Aquela cena era tão comovente, tão sublime e ao mesmo tempo tão triste.
- Deve transformá-la agora . - Disse Sthephan a Anthony. - Ou será tarde demais.
- Eu não posso... Não posso condenar meu doce anjo a essa vida. - Ele lamentou. - Uma vida de tormento...
Lucy olhou para Anthony e isso o fez desmoronar por dentro. Ele não podia viver sem ela, mas não podia condená-la. Estava sendo torturado por sua própria moralidade.
- Meu anjo... - Disse soluçando. - Eu farei esta dor passar.
Ela fechou os olhos. Anthony temeu que ela tivesse partido, mas seu coração ainda pulsava dentro de seu peito. Ele inclinou a cabeça dela, suas presas ficaram visíveis e ele as cravou em seu pescoço. Sugou o sangue e depois abriu seu próprio braço com uma mordida, deixando o sangue pingar em seus lábios pálidos levemente beijados pela morte.

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora