Capítulo 23 - Ira

9 1 0
                                    

Harmon não estava se reconhecendo ultimamente. Estava inquieto, irritado, ansioso e deprimido. Havia uma clara confusão dentro do frade, algo que ele nunca havia experimentado antes e estava angustiado por estar se sentindo daquela maneira. Estava evitando ir para casa nos últimos dias, pois sabia que estaria vazia e solitária, assim como ele mesmo. Sentia falta de sua filha. Ele não iria admitir aquilo em voz alta, era orgulhoso demais para admitir, mas quando deitava em sua cama a noite, lembrava-se do rosto de sua menina, do rosto sorridente e brilhante de Lucy.
O frade estava sentado no jardim da Catedral em silêncio. Seu rosto sereno escondia a saudade que abalava seu coração. Olhava para as flores e as adubava, afofando a terra com seus dedos magros e trêmulos. Lembrou-se de quando Lucy era criança, do quanto ela gostava de sentar-se em seu colo e ajudá-lo a afofar a terra, regar as plantas, sentir o aroma das flores. Lucy costumava deixar pequenas flores de pétalas amarelas e delicadas no colo de seu pai, como que para lembrá-lo de que ela esteve ali.
- Também sinto saudades dela. - Uma voz doce ressoou atrás do frade. A freira pegou um banco de madeira e sentou-se ao lado do frade. - Ela gostava muito de vir aqui e ajudar com as flores. As de pétalas amarelas, sim. Essas eram as que ela mais gostava.
- Pare de adivinhar os pensamentos das outras pessoas, irmã. - Harmon sequer tirou os olhos das flores. - Pode soar rude.
- Perdoe-me. Apenas queria dividir a minha saudade com alguém que também parece senti-la. - Os olhos da freira ficaram marejados. Ela amassou os lábios quando uma lágrima caiu sobre eles. - Será que ela está feliz?
- Espero que sim. Ele me prometeu que ela estaria feliz.
- Acho que podemos crer no melhor. - Ela colheu uma flor de pétalas amarelas. - Oh Deus, que o meu coração encontre sossego. Sinto que estou sendo egoísta, mas queria a minha menina aqui.
A freira levou as mãos ao rosto, as lágrimas brotavam e escorriam de maneira desenfreada.
Harmon odiava que as pessoas chorassem ao seu lado, odiava o som do choro e do soluçar, odiava como as pessoas não tinham controle de suas emoções, mas naquele momento, seu coração compartilhava daquele choro, daquela dor e daquela saudade. Harmon abraçou a freira Dominic, dando-lhe um pouco de alívio.
- Eu adoraria que minha menina estivesse aqui. - Ele disse serenamente. - Durante toda a sua vida quis que ela se tornasse como nós. Uma freira. Ela ficaria tão bem em um hábito, como um anjo. Esse sempre foi o meu desejo. Mas agora, não posso arrancá-la de seu tão promissor futuro.
- Isso seria cruel demais. - A voz dela estava rouca de tanto chorar. - Aquele rapaz parece ser uma boa pessoa, ele gosta muito dela, eu sei disso. E ela... - A freira lembrou de sua última conversa com Lucy. - Ela está aprendendo a amá-lo, imagino.
- Espero que sim. Minha menina é tão nova neste mundo. - Ele se sentia cada vez mais vulnerável enquanto falava, mas a fala era inevitável. Aquilo estava explodindo dentro dele, o sufocando, o matando aos poucos. - Ela é nova para os sentimentos, sejam eles quais forem. É a minha falha. Estive tão focado em torná-la quase uma santa, que esqueci que ela é apenas uma menina.
- Não se culpe, Harmon. - Disse a freira. - O senhor foi o melhor pai que Lucy poderia ter tido em toda a sua vida. Se o senhor soubesse o quanto ela é grata e o quanto o ama.
- Eu sempre fui muito duro com a minha menina. - Sua voz embargada era o presságio de um choro reprimido por anos. - Exigi tanto dela. Obediência, devoção... E agora ela se foi e em breve irá para sempre.
Harmon desmanchou-se em lágrimas. A angústia finalmente transbordou dentro de si.
- Devia ter sido seu pai. Devia ter a abraçado mais, brincado mais...
- Frade. - Chamou Dominic. - Pode culpar-se de muitas coisas, mas jamais de não ter sido um bom pai para ela. O senhor a encontrou e a adotou, muitos a teriam deixado para morrer, mas o senhor não. Lucy teve uma boa vida graças ao senhor, meu bom frade.
O coração de Harmon ainda parecia que ia explodir dentro de seu peito. A culpa era algo que ele não imaginava experimentar, nem mesmo a vulnerabilidade. Mas lá estava ele, ao lado de freira Dominic, chorando e dizendo tudo o que estava em seu coração há anos. Sentia-se infeliz.
- A minha menina... Eu desperdicei nosso tempo.

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora