Capítulo 02 - Amarga Mentira

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Os homens da fé retornavam para a cidade em seus cavalos enquanto a madrugada se esvaia dando chance ao sol de brilhar mais uma vez. Suas vestes carregavam resquícios da noite anterior, uma mistura de horror e morte lhes cobriam, embora nenhum deles parecesse temer tal combinação. Em seus rostos estava estampado o orgulho dos feitos naquela noite sombria.
- Que noite prazerosa - disse padre Frederic montado em seu puro sangue. - Devo dizer que há anos não me sentia tão vivo quanto hoje. Ver todos aqueles demônios rastejando e se contorcendo em agonia me trouxe mais vigor. 
- Eu o entendo, Frederic - falou frade Gerard. - Não há nada mais prazeroso nessa vida que cortar o mau pela raiz, ou cortar suas gargantas. - ele sorriu sarcasticamente. 
- Harmon, - chamou padre Jullian discretamente. - Esteve muito quieto durante toda a noite, mal o vi em ação. Sente-se bem?
- Agradeço sua preocupação, meu bom amigo - disse frade Harmon com um tom baixo. - Estou um tanto chateado, me esqueci do aniversário de minha filha e isso me deixou muito triste comigo mesmo. 
- É verdade - gesticulou padre Jullian. - Lembrei-me vagamente da data mais cedo, estranhei sua vinda conosco, mas não quis ser indiscreto. 
- Obrigada por sua discrição. - Harmon sorriu para seu bom amigo. 
- Já que tocamos nesse assunto, - disse padre Frederic, surpreendendo Jullian e Harmon. - diga-me Harmon, sua filha já tem idade para casar, não é? 
- A menina mal completou seus dezessete anos, Frederic. Ainda é uma criança. 
- Bobagem, meu caro. Conheço moças que são esposas com muito menos idade - rebateu Frederic. - Em breve, haverá uma grande oportunidade para desposar vossa filha. 
- E qual seria essa oportunidade, Frederic? - perguntou Harmon. 
- Creio ter comentado sobre a chegada de um importante contribuinte da igreja, o Sr. Oliver Dauphin. Um rapaz de família nobre e rica, jovem e um excelente caçador de vampiros. - disse Frederic. 
- Ouvi falar deste rapaz prodígio - disse Gerard. - Um exímio soldado, não houve um homem que permanecesse de pé após enfrentá-lo em um campo de batalha. 
- Exatamente, - disse Frederic. - não há homem melhor para sua filha. Escrevi algumas cartas a ele há algumas semanas comentando  sobre a jovem Lucy e ele demonstrou grande entusiasmo em conhecê-la. 
- Não me importa o entusiasmo dele, não deveria ter lhe escrito sobre minha filha. Além do mais, muito me agradaria que minha filha casasse com um homem diferente, sem qualquer ligação com a existência dos vampiros - disse Harmon. - Não a quero envolvida nisso.
- Bobagem, torno a dizer, estais dispersando uma grande oportunidade. Tu não viverás para sempre e tua filha precisará de um bom marido que cuide dela. - Frederic suspirou por um instante. - No entanto, sei como o senhor é teimoso e que minhas palavras não bastarão para convencê-lo, por isso, peço-te que venhas a um baile de boas vindas ao Sr. Oliver e verá por si mesmo o quanto ele é o homem ideal para vossa filha.
Harmon não quis continuar a discutir aquele assunto, apenas assentiu positivamente com a cabeça. 

O dia voltou a brilhar levando os raios de sol através das janelas da pequena casa de Lucy. A moça olhava a janela, acompanhando cada etapa da noite, da madrugada e do raiar do dia. Não havia conseguido fechar seus olhos uma única vez naquela noite. Sua cabeça martelava com tamanha força que a fez perder o sono, impedindo-a de descansar um segundo sequer. Ela levantou-se lentamente, ao sentar-se na beirada da cama, sentiu sua cabeça pesar como jamais havia sentido. Um gosto amargo estava em sua boca deixando-a enjoada. Ela levantou e se sentiu fraca, tal como deveria se sentir após uma noite mal dormida. 
A noite parecia não ter fim e quando a madrugada finalmente chegou, havia trazido consigo um tempo gelado e sombrio. Lucy tremeu de medo a madrugada inteira temendo ser pega de surpresa novamente por um intruso. Tentou se convencer tantas vezes de que os eventos daquela noite não haviam passado de um mero delírio de sua imaginação. Repetiu isso tantas vezes em sua mente, que começou a acreditar firmemente naquilo.
Caminhando em direção a sala, ela percebeu a vela quase que totalmente derretida em cera em uma pequena cadeira de madeira próxima da janela onde o misterioso homem se foi pela noite escura e fria. Sua crença de que tudo não havia passado de um delírio desmoronou ao relembrar toda a cena da noite anterior. 
Lucy sentou-se em um banco extenso de madeira clara do lado oposto da sala. Um arrepio veio novamente percorrer sua espinha ao lembrar do intruso. Os olhos dele eram um mistério que Lucy não conseguia decifrar e ficava frustrada com isso. A moça se entreteu em seus pensamentos tentando imaginar quais seriam as razões pelas quais aquele homem era perseguido por guardas, ela desejava saber aquilo com todas as suas forças. Passou tanto tempo pensando em tantas possibilidades que sequer viu o tempo passar. 
A porta da frente se abriu, o frade Harmon entrou em sua casa e viu sua filha com o cenho franzido distraída com seus pensamentos. Até aquele momento ela não havia se dado conta da presença do frade. 
- Bom dia, querida filha - disse o frade Harmon. 
Lucy saiu de sua cadeia de pensamentos assustando-se ao ver a presença de seu pai tão repentinamente. 
- Bom dia, meu pai - disse ela com a voz assustada. 
- Diga-me, quais são os pensamentos que tanto a distraem esta manhã? - quis saber o frade aproximando-se dela. 
Lucy pensou se deveria contar o ocorrido da noite passada para seu pai, mas algo a fez sentir que ela não deveria lhe dizer nada. Sabia que se contasse algo, seu pai jamais a deixaria sozinha novamente e sua pouca liberdade estaria findada. 
- Apenas pensamentos, meu pai. Nada de especial - disse ela com a voz mais convincente que conseguiu. - Como passou a noite? 
- Muito bem - respondeu o frade. - É sempre gratificante passar as noites a serviço do Senhor. E tua noite? Correu tudo bem enquanto estive ausente?
- Sim - respondeu ela. - Tudo na mais perfeita paz. 
- Amém. Já tomaste teu desjejum?
- Não, não tenho fome. 
- Ora, muito me admira, tu bem sabes que as refeições nos são um privilégio e uma graça concedida pelo Senhor. Não deves se privar das refeições, a não ser quando fizeres o jejum, que normalmente o fazes no domingo. 
- Sim, mas hoje acordei um tanto indisposta. 
Lucy sentiu um aperto em seu espírito por mentir para seu pai. Mentir sobre a noite passada e sobre o real motivo pelo qual não sentia fome. Seu pai sabia quando ela estava mentindo, mas com o passar dos anos, Lucy conseguia manter-se firme em suas palavras para que não houvessem desconfianças de alguma mentira. 
- Gostaria de ver um médico? - perguntou o frade relaxando os músculos de sua face. 
- Não, acho que apenas um pouco de descanso deve me fazer bem. - disse ela convicta. 
- Pois bem - disse o frade. - Deves te recuperar o mais rápido possível, em breve teremos a honra de participar de um evento importante. - o frade temeu falar demais sobre o assunto e deixar a filha ansiosa. Ele apenas deu um breve sorriso e passou a mão gentilmente na cabeça da moça. - Mas, por hora, vai descansar. 
Lucy sentiu um alívio preencher todo o seu corpo. O alívio de ter conseguido se manter confiante e convicta em suas palavras a inundava por dentro. 
- A propósito, - disse o frade fazendo o coração da jovem disparar. - Perdoe-me por meu esquecimento, sinto por ter me lembrado de teu aniversário. 
- Não sinta, querido pai - disse ela aliviada. - Sei o quanto és ocupado. 
- Nada justifica meu esquecimento - disse ele levando a mão esquerda aos cabelos de sua filha. - Não quero que duvides nem por um segundo que não és especial para mim. Nunca duvide de meu amor por você. 
Lucy abraçou seu pai com carinho, ele retribuiu o gesto. 
- Sei bem o quanto me ama, meu querido pai - disse Lucy. - Sou a mais afortunada das garotas por ter o senhor como meu pai. 
Os dois se afastaram do abraço e frade Harmon segurou as mãos de Lucy sobre as dele. 
- Se amanhã te sentires melhor, gostaria de ir à cidade para presenteá-la - disse o frade. 
- Não precisa…
- Eu insisto, não me negues este pequeno prazer. 
Lucy sorriu e assentiu, Harmon a beijou em sua testa e pediu para que ela fosse se deitar. A caminho de seu quarto, Lucy sentiu o sentimento de arrependimento a invadir tal como chamas. Sentia-se mal por mentir para seu pai, mas ainda sentia que devia manter os acontecimentos daquela noite só para si. 

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora