Capítulo 28 - Lar

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Ele estava inquieto. Seu espírito clamava pela beleza e doçura de sua tão amada musa encantadora. Sua deusa banhada de paixão e delicadeza, o ser mais sublime da terra. A distância e a falta de notícias o estava sufocando a alma. Anthony fechava os olhos e podia contemplar o rosto angelical de Lucy, podia ouvir sua voz melodiosa como o mais belo canto do mais perfeito pássaro. Ele era só um pobre demônio que não conhecia mais a vida sem seu adorado anjo. Imaginava como ela estava na propriedade dos Dauphin. Imaginava se ela pensava nele na mesma intensidade em que ele pensava nela. Estava cansado de imaginar. Cansado de sentir saudades. Desejava tê-la em seus braços naquele instante. Aquele desejo era torturante e abrasador em seu peito.
- Voltaremos para Paris ainda hoje. - Anunciou Vincent ao entrar na tenda onde sua comitiva estava. - Preparem-se para a viagem de volta.
- Enfim uma boa notícia. - Comemorou Anthony.
- Está mesmo animado em partir? - Indagou Benjamin.
- É claro que ele está. - Respondeu Sthephan com um tom divertido. - Ele vai poder reencontrar o amor de sua vida.
- É tão evidente assim? - Ele parecia constrangido.
- Anthony, meu caro, você se tornou um livro aberto desde que se apaixonou. - Explicou Sthephan. - Qualquer pessoa pode ver o que se passa nessa sua cabecinha de vento.
- E o que é que se passa na minha "cabecinha de vento"?
- Lindos olhos azuis como o céu da primavera. - Sthephan brincou, piscando os olhos freneticamente.
- Não o provoque, Sthephan. - Disse Benjamin
- Está tudo bem. Ele está certo. De fato é isso que está sempre em meus pensamentos.
- Um bobo alegre. - Brincou Sthephan. - Nós é que voltamos do mesmo modo que viemos.
- Eu gostaria de voltar aqui algum dia. - Disse Benjamin enquanto olhava em volta. - Este lugar me lembra um lar.
- A mim também. - Anthony respondeu. - Me recorda tempos bons.
- Quem sabe não voltamos aqui quando tudo isso acabar.

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Frade Harmon andava bastante apressado pelos corredores da Catedral. Seus pés pareciam querer alcançar uma velocidade que seu corpo não conseguia acompanhar. Estava tão apressado que sequer cumprimentava as pessoas à sua volta. Sua mente estava tomada por uma coisa e apenas única coisa. Era um estado de ansiedade misturada com felicidade que ele não conseguia esconder. Abriu abruptamente a porta da sacristia e foi em direção a Frederic que estava sentado sobre um baú com uma carta em suas mãos.
- Deixe-me ler. - Pediu ofegante.
- Acalme-se, meu bom frade. - Disse Frederic ao ver a ansiedade nos olhos de Harmon. - A carta não voará de minhas mãos para longe.
- Ora essa. - Reclamou revirando os olhos. - Dei-me de uma vez.
Frederic ergueu a carta para que Harmon pudesse pegá-la. Rapidamente ele a abriu e começou a ler com uma expressão compenetrada. Era a letra de Lucy, ele a reconhecia. Há muitos anos, o frade ensinou sua filha a ler e a escrever, mesmo que uma mulher não tivesse tal direito, mas para Harmon, era essencial que sua filha soubesse o básico para poder viver naquele mundo. Segurando firmemente, ele leu a carta que dizia: "Querido pai, nunca conheci um lugar que se igualasse em tamanho e beleza. O inverno aqui mostra-se muito mais implacável e imprevisível. A neve é abundante e cobre quase toda a paisagem, mas ela não é afetada por isso. Tudo por aqui é encantador, tanto o lugar quanto as pessoas. Todos estão sendo gentis e amáveis. Meu futuro marido tem se mostrado um exímio cavalheiro, respeitoso e carinhoso. De fato, este lugar é adorável e desejo do fundo do meu coração, fazer daqui a minha morada. Entretanto, a saudade do senhor me corroi até os ossos. Acredito que voltarei para Paris em dois dias, até lá, sentirei saudades suas. Com afeto, Lucy."
Harmon suspirou com alívio, como se um enorme caroço tivesse desaparecido de sua garganta e ele pudesse finalmente respirar normalmente.
- Posso ver em sua expressão que as notícias são boas. - Disse Frederic.
- De fato. - Respondeu dobrando o papel. - Ela parece bem na casa dos Dauphin.
- Eu lhe disse. - Ressaltou. - Disse que ela ficaria bem. E quanto ao senhor Oliver? Ela o menciona na carta.
- Sim. Aparentemente ele tem se portado de forma adequada.
- Eu sabia. - Frederic levantou-se num salto de entusiasmo.
- A melhor notícia é que ela estará de volta em poucos dias.
- Verdade? Esplêndido. Será um momento de alegria em vê-la de volta ao lar. Sei que tem sentido a falta dela.
- Eu...
- Não precisa ficar envergonhado. - Frederic lhe deu um tapinha nas costas. - É um sentimento comum, afinal ela é a sua filha. Também sinto falta dela.
- Não gosto de ser estudado, Frederic.
- Que culpa eu tenho se leio bem as pessoas? É um dom, meu amigo.
- É inconveniente.
- Perdoe-me se pareci invasivo. - Disse Frederic. - Eu sei o quanto preza pela descrição de seus sentimentos.
Harmon assentiu, dando a entender que havia desculpado seu amigo. Embora ele não gostasse que as pessoas interpretassem seus sentimentos, ele não podia negar que havia deixado alguns deles transparecer naqueles dias.
- Mudando o assunto para outro não muito agradável. - Frederic pigarreou. - Os soldados não encontraram nada nas catacumbas aos arredores desta catedral. Absolutamente nada. Apenas ratos moram no chão abaixo de nós.
- Acredito que estão brincando conosco. - disse franzindo as sobrancelhas.
- Os soldados ou os ratos.
- Odeio quando debocha de mim, Frederic.
- Perdão. Minha natureza é falha.
- O sacerdócio deveria ter lhe ensinado sobre brincadeiras fora de hora.
- Ensinou, mas não assimilei tudo. - Ele riu de forma divertida. - Falando sério agora, eu realmente não sei o que pensar. Parece que estamos andando em círculos com esses malditos vampiros.
- Devemos ficar atentos. - Ressaltou Harmon. - Até mesmo os ratos precisam sair de seus ninhos de vez em quando. E quando acontecer, devemos estar preparados.
- Que Deus nos ajude então, pois esses ratos não são tolos.

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A carruagem dos Dauphin parecia um caixão. Sufocante, escuro e mórbido. E que mal havia nisso? Para Lucy, era quase bom estar dentro daquele caixão se não fosse pela presença detestável de Lady Dauphin. A mulher de olhos odiosos sequer olhava ou falava com a jovem à sua frente, como se ela não existisse.
Durante a viagem, Lucy sentia-se em seu próprio cortejo fúnebre. Despedia-se em silêncio das paisagens estonteantes que havia admirado na primeira vez que as viu. Sentia um sabor amargo em sua boca quando lembrava do cadáver de Constantine, pendurado no galho. Devia ser ela ali. Talvez, todo aquele sofrimento tivesse cessado com o vazio que a morte podia lhe oferecer.
No mesmo dia em que havia visto o corpo de Constantine, Lucy tentou contra si mesma. Estava em silêncio, sentada na beira da cama com as pernas cruzadas sobre o colchão. Fitava a janela trancada e se imaginou correndo em sua direção, despedaçando o vidro e caindo sem vida no grama da propriedade. Uma outra ideia, menos violenta, mas com eficácia semelhante, lhe veio à mente. Na bandeja onde eram trazidas as suas refeições, havia os talheres de prata e uma faca bem afiada. Suas pernas se moveram tranquilamente e parecia que nada poderia pará-la. Pegou a faca e a encarou. A mão esquerda trêmula enquanto a segurava sobre sua pele, esperando que um sopro de coragem a fizesse rasgar os pulsos e sangrar até a morte. Nada passava em sua cabeça. Havia um branco interminável dentro de sua cabeça. Ela não pensava. Queria que a dor, a agonia e o desespero desaparecessem imediatamente. Mas, antes que o sopro de coragem viesse ao seu encontro, um soldado entrou em seus aposentos e, sem muito esforço, conseguiu tirar a faca das mãos de Lucy.
Oliver ficou furioso quando soube. Ordenou que ela ficasse sem comida, apenas com água por dois dias. Todo e qualquer objeto considerado útil para atentar contra a própria vida foi tirado do quarto e um soldado à vigiava dia e noite. Oliver ia a seus aposentos constantemente para atormentá-la, lembrá-la que era ele quem mandava, era a ele que pertencia os poderes e a soberania naquela casa. A maltrata não apenas com palavras, mas com ações. Batia em seu rosto, socava seu estômago até que ela cuspisse sangue, a arrastava pelos cabelos e a jogava na cama e a socava onde melhor lhe aprouvesse. Lucy gritava e o mordia, revidava os tapas, mas tudo o que fazia era piorar a ira de Oliver.
Algo havia morrido dentro de Lucy. Sua alma estava destruída e isso era perceptível em seu rosto. Não havia mais encanto ou inocência em seus olhos, pois havia descoberto da pior maneira que os homens são tão ruins quanto o próprio diabo.

A comitiva chegou em Paris pouco antes do anoitecer. A carruagem estacionou na frente da Catedral. Oliver desceu de seu cavalo e foi em direção a porta esquerda da carruagem, Lady Dauphin desceu primeiro, logo em seguida Lucy desceu. Com os olhos fundos, um aspecto de cansaço e doente, Lucy viu aquela Catedral enorme diante dela e sentiu que estava em casa, mas, de alguma maneira, não estava segura. Oliver segurou discretamente em seu braço, puxando-a para perto dele.
- Concorde com o que eu disser, fui claro? - Ele sussurrou em seu ouvido com um tom ameaçador.
Ela assentiu vagarosamente com o olhar distante fitando o chão.
A porta da frente se abriu e, um a um, os membros da igreja saíram. Lucy pôde observar a rápida transformação no semblante de Oliver, deixara de ser ameaçador no momento em que sorriu de forma encantadora para aqueles que se aproximaram.
- Enfim, - Disse Frederic com alegria. - a nossa querida volta ao seu lar.
Ele a abraçou com força e ternura, como um pai faria. Se afastou com um sorriso sincero desenhado nos lábios. Frederic não pôde deixar de perceber a aparência mórbida de Lucy.
- Criança, - Disse um tanto alarmado. - sente-se bem? Está abatida.
- Ela ficou muito resfriada, senhor padre. - Oliver respondeu prontamente. - Mas, graças a Deus, está se recuperando.
- Venha aqui me dar um abraço apertado, minha menina. - Disse Freira Dominic estendendo os braços para Lucy.
A menina foi em sua direção e deixou que seu corpo fosse completamente consumido pelo abraço da freira. Ela cheirava a canela e trigo, era o cheiro que Lucy sentia no manto da freira desde a infância, naquele momento, era o cheiro de seu lar e de sua segurança.
- Meu filho não mentiu quando disse que Lucy era tão amada por todos na igreja. - A voz de Lady Dauphin soou suave. - Chega a ser comovente presenciar tamanho carinho e afeto.
- De fato, minha senhora. - Uma voz grave e serena surgiu entre eles. - Esta menina é muito querida por todos nós.
Os olhos chegaram ao dono daquela voz e viram Frade Harmon, com um ar sereno e algo paterno em sua expressão.
- Papai... - Ela disse carinhosamente.
Lucy saiu dos braços de Dominic e encontrou os de seu pai. Harmon não tinha a mesma abundância de carne que a freira possuía, mas para Lucy, os seus braços também eram o seu lar seguro. Naquele momento, era tudo o que ela queria, era tudo o que ela precisava. A menina conseguiu respirar sem dificuldade pela primeira vez em dias.

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora