Capítulo 03 - Contos de bruxas e assombros

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O sol se punha ao longe atrás das árvores enquanto o céu escurecia acima dando vez às estrelas de brilharem na imensidão. Frade Harmon acendeu a lareira no canto da sala, colocando a lenha recém cortada que havia comprado mais cedo. Lucy preparava o jantar. Sopa de cogumelos era a preferida de seu pai e ela o fazia com muito gosto, embora não gostasse de sopa. Ela pôs a mesa, enquanto seu pai acendia as velas e as colocava sobre a mesa. Ambos sentaram-se na mesa e antes de se servirem deram as mãos e oraram à Deus. 
-Que Deus abençoe nosso pão. Que sua imensa misericórdia caia sobre nós e que nunca nos falte o alimento do corpo e da alma. Amém. 
Lucy fez o sinal da cruz e em seguida serviu seu pai e logo depois serviu a si mesma. O cheiro da sopa enjoava a jovem, mas ela nunca reclamava. Ela sempre pedia a Deus que a fizesse gostar daquilo que o pai gostava, mas nunca conseguiu suportar sequer o cheiro da sopa. Ela mantia esse desagrado em segredo, pois sabia que se o pai soubesse ele a daria um longo sermão por achar que ela não era grata pelo pouco que tinham. 
-Diga-me, querida, sente-se bem agora? - perguntou o frade.
- Sim, papai. - respondeu Lucy. - Renovada após um bom descanso. 
- Isso me alegra - disse frade Harmon colocando uma colher de sopa em sua boca. - O que acha de lermos a bíblia após o jantar? Para agradecermos pela sua melhora.
- Eu adoraria. 
Lucy sorriu para seu pai, mas foi falsa. Sentia-se a pior criatura por não gostar de ler a bíblia com a frequência que seu pai pedia. Na verdade, muito do que seu pai gostava ou pedia para que ela fizesse, Lucy achava que não era certo, pelo menos, não aos olhos dela. 
Após o jantar, frade Harmon sentou em uma cadeira de madeira sem braços e Lucy sentou-se no chão próxima a lareira. Frade Harmon iniciou a leitura das escrituras sagradas e vez ou outra olhava para Lucy para ver se a mesma estava prestando atenção. O livro favorito da bíblia para o frade Harmon era Genesis. Ele gostava de ler sobre a criação de Deus. Lucy não gostava muito de Genesis. Não só porque seu pai o lia sempre que podia, mas porque sempre a fazia lembrar de como era fraca e suscetível ao mal. 
-Gostaria de ler um pouco? - perguntou Harmon a filha. 
Ela balançou a cabeça positivamente pegando a bíblia das mãos de seu pai e dando continuidade a leitura. Enquanto lia o versículo, Lucy, sentiu-se desconfortável em desferir as palavras em voz alta. Não entendia o motivo do desconforto. Ela parou de ler subitamente.
-Pai - disse ela. - Se os homens são fracos ao mal, então, porque Deus nos criou? 
- Querida, Deus criou o homem sua imagem e semelhança. Deus quis povoar este mundo com sua maior obra, no entanto, foi a mulher de Adão que foi suscetível ao mal. 
- Mas Adão também aceitou o mal. 
- Adão pecou por causa de Eva. 
- Mas ele também pecou. Porque o erro cai apenas em Eva?
- Porque foi ela a primeira a cair e foi ela quem desencaminhou Adão. 
- Mas ele pecou, papai. Ele também foi fraco. 
- Pare de blasfemar, criança. Eva era apenas uma mulher, não era a imagem e semelhança de Deus. Ela era fraca e enfeitiçou Adão para que ele caísse no pecado. 
Frade Harmon tomou a bíblia das mãos de Lucy rudemente, seu cenho estava rígido e sua expressão de descontentamento era nítida. Ele levantou-se da cadeira e seguiu para a cozinha, onde pegou um copo d'água. 
Lucy levantou-se do chão com uma expressão de arrependimento. Não queria aborrecer o pai, nunca, jamais. 
-Papai - disse ela em tom baixo aproximando-se dele. - Perdoe-me. Eu não quis aborrece-lo, eu só… 
As palavras lhe fugiram. 
-Você só?
Lucy respirou fundo e continuou: 
-Eu só sou uma jovem tola e inclinada ao pecado. Os meus pensamentos se confundiram e eu quis questionar aquilo que é inquestionável. Blasfemei contra a palavra do Senhor Deus e te aborreci, meu pai. Sou má e imploro o teu perdão, assim como o perdão de Deus. 
Essas eram as palavras que Harmon desejava ouvir. Ele se aproximou de Lucy e a menina ajoelhou-se à frente dele. 
-Eu te perdoo, filha - disse ele com um tom de satisfação. - O teu reconhecimento do teu erro são a maior prova de arrependimento. No entanto, não é tão simples obter o perdão de Deus. Vá para o teu quarto e reze. Reze para que Deus a perdoe. 
- Sim, papai. 
Frade Harmon fez o sinal da cruz na testa da menina. Lucy levantou-se, deu um beijo no rosto de seu pai e seguiu para o seu quarto. 
Ela acendeu uma vela e ajoelhou-se, colocando seus cotovelos na beirada da cama. 
-Oh Deus misericordioso - começou a orar em voz alta. - Perdoa meus pecados. Perdoe minha blasfêmia e minha dúvida sobre as tuas escrituras. Eu imploro a ti que não me condenes à danação eterna. Tenha piedade de mim, pois sou uma mulher e sou fraca. Não permita que o diabo se aproxime de mim e domine minha alma. Eu te peço, pelo amor infinito que tens a teu filho, me perdoe e me ajude a seguir vosso caminho. Deus, meu Deus misericordioso, salve minha alma das labaredas do inferno. Ajude-me a enxergar aquilo que é bom e correto aos teus olhos. Que a tua vontade prevaleça sobre a minha e que a vida mundana não me corrompa. Amém. 
Lucy fez o sinal da cruz e por um momento fitou a janela. A noite lá fora era escura, mas a lua iluminava o céu como um ponto de esperança. E mais uma vez, a jovem sentia-se culpada, pois não achava errado seus questionamentos e pedia o perdão de Deus sem sinceridade. Aquilo a corroia por dentro tal como vermes devorando a carne de um cadáver. 
Lucy estava deitada em sua cama, mas o sono não chegava. No entanto, isso não a incomodava, pois ela sabia o motivo de não estar com sono. Retirando sua coberta sutilmente de cima de si, ela levantou da cama e andou cuidadosamente até a porta de seu quarto. Ela abriu a porta com bastante cuidado para não fazer um único barulho, atravessou o corredor até a porta do quarto de seu pai e espiou pela fresta da porta, certificando-se de que o mesmo estava dormindo e pelo o que ela pôde ver, ele estava sim dormindo. Do mesmo modo cuidadoso ela voltou para o seu quarto e pegou a cesta que freira Dominic havia lhe dado mais cedo. Lucy já havia tirado os pães e a geléia de dentro da cesta e os guardou na cozinha. O que havia sobrado na cesta foi o tecido que a feira havia colocado. Abaixo do tecido havia um fundo falso na cesta e abaixo desse fundo falso haviam papéis dobrados. Lucy pegou entusiasmada aqueles papéis e os abriu para ver o que havia escrito neles. Em uma bela caligrafia, estava escrito bem no topo da página: Lendas de bruxas e assombros. 
A garota sorriu ao ler o título e se aproximou da janela para ler sob a luz da lua cheia daquela noite. 

"Em um tempo não tão longínquo, sob a luz do luar do outono, houve uma criança que era muito amada e muito bela. A criança trazia consigo o brilho do sol como se fosse agraciada por Deus a todos os momentos. Mas o mal a odiava e desejava, acima de tudo, arrancar sua vida de seu peito. Numa noite de lua cheia, a criança ouviu uma canção que a enfeitiçou fazendo-a caminhar várias e várias horas pela floresta adentro. A voz sublime e melódica levou a criança até uma clareira no centro da floresta, onde uma mulher de aparência jovem surgiu dentre as árvores. A mulher parecia flutuar sobre a grama vívida e verde e, ao aproximar-se da criança, lhe acariciou os cabelos longos e castanhos. A mulher pegou a mão da criança e a levou consigo para a parte densa e escura da floresta. Lá, entre pinheiros, havia uma pequena cabana de madeira, com portas e janelas e uma chaminé. A mulher e a criança entraram na cabana. Quando a porta se fechou a figura bela da mulher derreteu em seu rosto, logo, uma face abominável foi revelada. Com os olhos vermelhos do diabo e a boca rasgada de uma abominação, a bruxa, puxou um punhal de sua cintura e apunhalou a criança. O sangue gotejou por sua face deformada, ela então pegou o corpo de sua vítima e o levou até a mesa, onde ela o fatiou em pequenos e desordenados pedaços, enquanto o sangue inundava suas mãos. Ela lambeu o sangue de suas mãos enrugadas e nojentas e se deliciou com a carne da criança. O que sobrou, ela jogou em seu caldeirão e ferveu para banhar-se na pele de sua vítima. E dizem, que até os dias de hoje, ela vaga pela ruas e bosques, em busca de uma nova vítima. As bruxas têm predileção pelas crianças e mulheres jovens, especialmente, aquelas que são consideradas boas demais. Dizem que a carne das puras lhes causa imenso prazer e seu sangue é oferecido ao diabo enquanto elas dançam para ele em uma fogueira." 

Lucy sentiu um arrepio em sua espinha, seu coração estava disparado e ela sentia como se seu sangue houvesse congelado. Ela podia sentir as vibrações do medo e do pavor percorrerem todo o seu corpo. Desde nova, Lucy tinha uma curiosidade exuberante e adorava ler, lia de tudo, desde poesia a contos de terror para crianças. E se interessava ainda mais quando os contos eram sobre bruxas e vampiros. Quando criança, ouvia de seu pai sobre essas criaturas maquiavélicas e amedrontadoras e isso despertou seu desejo de conhecer mais afundo essas criaturas, no entanto, o fazia em segredo, pois seu pai não permitia que ela lesse nada além da bíblia. Por isso, ela guardava todos os contos, poemas e canções embaixo de uma tábua solta abaixo de sua cama, rezando à Deus para que seu pai jamais os encontrassem. Todo ano, em seu aniversário, freira Dominic a presenteava com estes textos, ela era a única que sabia desse fascínio da jovem, pois, ao contrário do frade Harmon, a freira não acreditava em uma educação muito rígida quanto a leitura, pois ela mesma gostava de ler outras coisas fora a bíblia. 
Lucy, possivelmente, era a única menina que sabia ler na cidade. As outras mulheres não sabiam ler absolutamente nada e se encatavam ao ver que a menina conseguia ler qualquer coisa. Embora o pai a tivesse criado como uma mulher deveria ser criada naquele tempo, ele fez questão de que ela aprendesse a ler a bíblia. Na verdade, frade Harmon desejava do fundo de seu coração que Lucy se torna-se uma freira, no entanto, deu-lhe o poder de escolha: a igreja ou o casamento. A menina optou pelo casamento, embora nunca tivesse pensado em se casar algum dia. Ela jamais havia tido contato com rapazes, nenhum. Lucy sequer tinha amigos de sua idade, pois seu pai os chamava de a perversão do mundo. 
Ao guardar seus contos embaixo da cama, Lucy voltou a pensar no jovem rapaz da noite passada. Pensava o quanto ele lhe despertava a curiosidade, tanto quanto aqueles contos. Ela temia que ele nada passasse de uma lembrança e que jamais pudesse desvendar o mistério que ele possuía em seus olhos.

Sangue Profano (FINALIZADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora