Estamos deitados de conchinha na cama, Eros havia chorado bastante desde aquele momento e eu fiquei ao seu lado o tempo todo enquanto acariciava seu cabelo. Ele ainda fungava quando se desvencilhou do meu toque e se sentou na cama, fiz a mesma coisa e ficamos ambos em silêncio pelo o que pareceu uma eternidade. Seus olhos estavam grudados no chão, era obvio que ele enfrentava os próprios demônios.
—Eu cresci em um orfanato.—Começou me dizendo.—Nunca fui adotado, aos onze eu praticamente perdi as esperanças de que algum dia eu seria. As outras crianças me achavam esquisito e me mantinham longe, as freiras se diziam devotas de Deus mas se comportavam contrarias às doutrinas de sua religião, minha rotina era a mesma todos os dias: acordar, fingir que ouvia os discursos de ódio velados com um véu dourado de fé que as irmãs proferiam todos os dias pra fazer lavagem cerebral em crianças e torna-las monstros tão preconceituosos quanto elas no futuro, surtar com a certeza de que era o único que não caia na ladainha da falsa fé, assistir as outras crianças brincando sozinhas e ocasionalmente sofrer bullying delas, comer a pouca comida que me era permitido, chorar baixo no escuro com a crise existencial de que eu estava vivendo em uma mini distopia e dormir com medo das freiras decidirem me acordar a noite e me forçarem a dormir no "quarto santo" com frio e no escuro...
Ouvi tudo calado, sentindo os horrores da sua infância escurecerem metaforicamente o quarto. Minha mente foi atormentada outra vez com a mesma imagem de antes, e dessa vez eu sabia o significado sobre ela.
—Isso tudo começou quando uma delas me pegou beijando um garoto aos sete anos, eu imediatamente me tornei o inimigo da sua fé e a minha mera presença era um insulto a tudo o que elas acreditavam. O outro menino mentiu dizendo que eu forcei ele, então saiu ileso. Já eu não tive essa sorte, eu me recusei a aceitar a doutrina delas, ativamente me rebelei contra a ideia de "amor" que elas tentaram forçar em mim e isso as enfureceu. As irmãs desistiram de me "concertar" e ao invés disso decidiram me quebrar indiretamente, eu era o que tinha mais tarefas e menos comida, o maior número de punições e o menor tempo de lazer, elas me forçavam a confessar pecados que eu nunca cometi, me humilhavam durante as aulas e quando eu ousava tentar me impor contra sua vontade, passava a noite no quarto santo.—Eros abraçou o próprio corpo e se encolheu.—Era tão frio, o chão era sujo, não tinha janelas, era escuro, e tinham os crucifixos...
Ele voltou a chorar e eu a o abraçar e trazer junto de mim.
—Eu não entendi até descobrir que era um demônio, mas não tinha o que me assustava mais que os crucifixos. Eu sentia uma dor de cabeça tão forte quando estava perto de um, e essa dor costumava se espalhar pelo meu corpo, eu sentia todos os ossos do meu corpo serem esmagados de novo e de novo, eu nunca parei de sentir essa dor naquele lugar, mas no quarto santo... era como ser esmagado pela pressão do oceano, vinha de todos os lados e nunca parava. As freiras obviamente não sabiam disso, elas só sabiam que eu não gostava deles e isso era o bastante pra elas quererem me trancar lá dentro.—Talvez seja por isso que ele vire os crucifixos de ponta cabeça, talvez eles não o machuquem assim.—Me lembro que um dia eu ouvi os pensamentos de um garoto, ele me achava bonito, queria me beijar. Quando eu tentei realizar as vontades dele, o moleque reagiu me dando um soco. Sabe, esse é o problema de ser o demônio da luxuria, você sempre sabe o que uma pessoa quer mas nem sempre a própria pessoa sabe e quando você tenta dar a elas o que elas querem, bom, as vezes a reação é a pior possível.
—Não tinha nada de bom na sua infância? Nada mesmo?
Eros se calou por um tempo, pensativo.
—Só consigo pensar nas vezes que eu estava fora do orfanato, aos quinze eu comecei a fugir pra me encontrar com um garoto, a gente ficava naquela época. Nos anos finais da minha estadia lá, algumas freiras novas vieram, essas sim praticavam o que a fé delas pregava e começaram e me proteger das outras, sempre que me mandavam pro quarto eram elas que me tiravam de lá.—Eros tinha um sorriso no rosto enquanto contava sobre isso.—Eu até fiquei com pena de ir embora por causa delas, mas no mesmo dia que fiz 18, sai sem olhar pra trás. Eu comecei a vender meu corpo pra sobreviver, aquele garoto com quem eu ficava me ajudou, ele me encontrava clientes, me protegia e deixou que eu morasse com ele, em troca, parte do meu lucro era dele.
—Então ele não era seu amigo, era seu cafetão.
—Talvez, mas isso me ajudou de qualquer forma e não é como se ele estivesse me forçando a abrir as pernas.
—Se você vê dessa forma então tudo bem. Quando começou a trabalhar no clube?
—O dono veio até nós procurando novos "talentos" pro clube novo dele, fizemos uma "entrevista" e arrumei o emprego, o resto é história.
Levei um tempo pra processar tudo que ele disse. O sofrimento dele foi tanto e a única coisa positiva foi a ajuda de algumas pessoas e o sexo, faz muito sentido ele não achar que não consegue amar alguém, ninguém nunca o achou digno disso.
—Eu quero que a gente dê certo, eu quero mesmo. Eu sinto muito por tudo que você passou, eu tô aqui com você. Leve o tempo que precisar, mesmo que no fim você não realmente me ame.
—Mas eu amo, e eu tenho medo disso. Quando você disse aquilo na praia foi como um choque de realidade, eu realmente te amo e não é pouco, mas fiquei esse tempo todo mentindo pra mim mesmo. Acho que eu não acreditei que houvesse amor pra alguém como eu.
Segurei seu rosto da maneira mais delicada possível, como se qualquer toque meu pudesse quebra-lo como porcelana e beijei seus lábios, o gosto salgado das suas lágrimas não me incomodou nem por segundo. Quando nos separamos, Eros tinha um olhar sereno apesar do rosto machado pelo choro.
—Não tem nada de errado com você, talvez nosso relacionamento não tenha sido o mais romântico, mas isso não importa pra mim, vejo suas provocações e libertinagens como uma forma de expressar amor.
—Talvez seja isso mesmo, é que eu nunca achei que sexo fosse grande coisa até começar a fazer com você. Até sexo à três me soa sem graça se não estiver com você lá.
Passamos mais um bom tempo conversando, Eros me contou sobre outros eventos ruins e outros bons. O que mais me chamou a atenção foi quando ele descreveu o dia onde a madre tentou tranca-lo no quarto santo algumas semanas antes dele sair do orfanato, o que aconteceu depois me deixou meio em choque, Eros ficou com tanta raiva que acabou fazendo os crucifixos da sala virarem e foi pra cima dela queimando parte do seu rosto acidentalmente. Ele só escapou das consequências pois a madre ficou desacordada nas semanas seguintes e as irmãs que estavam do lado dele conseguiram inventar a desculpa de que a velha acabou derramando água quente no próprio rosto no meio da discussão. Quando a conversa acabou já eram seis da tarde, Eros foi tomar um banho. Mei vai cozinha o jantar também, decidi andar um pouco pela mansão enquanto esperava pela minha vez.
—Estou tão certo quanto o sol é brilhante, minha cara.—Travei ao ouvir a voz do Alastor por detrás de uma porta.
—Você deve estar enganado. Eu estive na presença dele, pude sentir a alma dele. É humana.—Reconheci a voz da Mei.
—Muito humana.—Eu quase consigo sentir o sorriso sínico dele.
—O que quer dizer com isso? Não importa o que você tenha visto, ele é claramente um humano.
—Os olhos podem enganar até o mais experiente, querida. Não estou insinuando nada, mas tudo o que vejo quando olho para ele é a alma de um ser celestial ou profano disfarçada com uma máscara exageradamente humana.
—Então ele mentiu pra nós?
—Duvido que ele próprio saiba disso, na maioria desses casos a pessoa nem conhece sua real identidade.
—Ainda assim, se ele for um anjo pode muito bem também ser um espião, seria melhor avisarmos a Yara.
—Acredite, lady Lúcifer já deve estar ciente e se ela não o vê como uma ameaça imediata, devemos deixar tudo em suas mãos.
Eu decidi sair antes que ouvisse demais.
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Tasteful Depravity
RomanceEstar preso em um internato no auge da vida adulta normalmente seria um porre, e no caso de William é um porre. Estando no seu segundo ano na Quentin, uma escola interna para garotos, William Rupert de 19 anos acaba conhecendo um novo colega de quar...