𝙲𝚊𝚙í𝚝𝚞𝚕𝚘 𝟻 - 𝚁𝚊𝚜𝚝𝚛𝚘𝚜 𝚍𝚎 𝚜𝚊𝚗𝚐𝚞𝚎

20 6 10
                                    

Um turbilhão de pensamentos atravessou sua memória.

Ela lembrou de todas as vezes que brincou com seu pai, das horas que ele passou lhe ensinando artes marciais, sempre paciente e encorajador. Lembrou dos jogos de futebol, dos passeios que faziam juntos, das vezes em que saíam na chuva e começavam uma guerra de lama, rindo até não aguentarem mais.

Lembrou de como ele a levava ao museu de arqueologia, contando-lhe histórias fascinantes sobre os artefatos que pareciam ganhar vida em suas palavras.

Ele estava sempre presente, em todos os momentos importantes de sua vida. Nas arquibancadas, torcendo por ela, nos dias comuns, oferecendo conselhos e sabedoria. A lembrança do amor que sentia por ele a envolveu como um manto reconfortante, até que a realidade cruel se impôs. 

Diego, agora, não passava de um cadáver, à espera de vermes devorarem sua carne, um destino que parecia incoerente para alguém tão cheio de vida.

Uma cena específica passou pela sua mente.

Tinha 8 anos e, no quintal da casa, ao ar livre da tarde que aguardava a noite iminente, observava seu irmão Calebe aplicar um golpe avançado, que Diego batizara de “gira-gira”.

— Isso aí, Calebe, show! Sua vez Marcos — disse o pai para o irmão mais velho.

Marcos, um garoto de 12 anos, correu até um velho boneco de pancada, pulou diante dele, deu um giro aéreo e caiu sobre o boneco, assim aplicando o golpe habilidoso, ainda melhor que Calebe.

— Esse é o meu garoto! — falou Diego, orgulhoso, e bagunçou o cabelo do filho — É tu agora, neguinha.  

A pequena Catupi correu, pulou e girou desajeitada, mas seu giro não passou perto do boneco e ela caiu no tatame. 

Tentou 2 vezes e não conseguiu, e logo gargalhadas invadiram o lugar, vinda de seus irmãos mais velhos.

— Vamo lá, mais uma vez — disse seu pai.

Ela ainda não conseguiu. 

— Bora lá, Catupi, foco! 

Não conseguiu. 

A garota passou a mão no nariz, depois no olho onde uma lágrima deslizara de sua face.

— Saíam! — falou Diego para Marcos e Calebe, e eles saíram.

Ele se ajoelhou, segurando nas mãos de sua filha, soltou toda a tensão dos ombros. Ao perceber que a filha não estava ali para ser uma lutadora profissional, e sim porque gostava da companhia dele, disse:

— Ô meu bacurinzin, eu não devia pressionar você. Tu me perdoa?

Ela afirmou com a cabeça.

— Tu consegue, Catupi, tu consegue fazer aquele golpe, tá bom? Só que no seu tempo. Eu já tô muito orgulhoso de você, neguinha — Ele bagunçou o cabelo dela, e então, em um tom cômico, imitou o mestre Yoda: — Você aprendendo está, jovem padawan.

A filha não pôde deixar de rir. E então o pai a abraçou.

Catupi desejou sentir aquele abraço paterno caloroso mais uma vez. A lembrança trouxe um aperto em seu coração, e uma única lágrima escorreu de seu olho, carregando toda a dor de sua perda.

Enquanto isso, Kyoto, pálido e com a mão no estômago, se dirigiu apressado à janela, lutando contra a náusea que o dominava por ver aquele cadáver. Catupi respirou fundo, mas o ar parecia rarefeito, difícil de alcançar seus pulmões, e o quarto pareceu ficar ainda mais abafado.

Quando voltou, Kyoto se aproximou, tocou gentilmente o ombro dela, e então Catupi o abraçou. 

O abraço era tão aconchegante quanto as xícaras de chá quente de camomila que Kyoto já preparara para ela, e o corpo dele contra o seu parecia um travesseiro macio. Foi aí que ela soltou o ar que estava sendo preso e onde uma pequena lágrima virou um choro suave, salgando a camisa de botão do rapaz. Era a primeira vez que ele a via chorar. 

Intrépida: a relíquia do inventorOnde histórias criam vida. Descubra agora