Capítulo Um

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Ir embora da capital nunca esteve nos  meus planos. Certo, eu também não saía muito lá, mas ainda assim, o que vou fazer nesse fim de mundo? Eles realmente querem que eu tire leite de vaca ou colete ovos de galinhas? Eu realmente não sou fã de qualquer coisa que envolva trabalho braçal. Na realidade, não sou fã de nenhum tipo de trabalho. Sempre me imaginei como uma esposa troféu ou algo do tipo.

— Você vai gostar — comenta minha madrasta com o tom mais sarcástico possível. — Terá muitas galinhas... vacas... você pode se identificar.—Olho para ela com a maior cara de desgosto que consigo fazer. Não acredito que ela realmente disse isso para mim e, pior, meu pai não falou absolutamente nada. Não que eu esperasse, mas ela acabou de me chamar de galinha e vaca?!

— Você tem razão... posso gostar mesmo, mas talvez as vacas gostem mais de você — digo, olhando para os peitos dela que estão quase pulando para fora de sua regata extremamente justa ao corpo plastificado.

— Helena, por favor, não comece hoje. Estamos bem! Só serão algumas semanas, você vai se acostumar — eu bufo e franzo a testa, vendo como meu pai se importa mais com uma mulher que tem quase a minha idade do que comigo, sua filha.

O caminho para Sanges é longo. Morávamos em Curitiba, em um bairro de classe média, mas nada exuberante. Tínhamos uma vida extremamente confortável, sempre tivemos tudo do melhor. Meu pai trabalha home office há anos, minha madrasta é só uma interesseira como todas as outras que entram em nossa vida, mas sei que não vai durar. Nunca duram. Assim que ela perceber que ele não é o homem que ela criou na cabeça dela, ela irá embora. Como todas as outras.

Enquanto não chegamos, coloco meu headphone e vou escutando minha playlist para viagem até o sinal cair. Acabo adormecendo algumas horas antes de chegar, e meu último pensamento é se isso realmente vai funcionar.

Algumas horas depois, acordo e ainda estamos a caminho. Será que é realmente no fim do mundo? Começo a pensar se seria uma boa ideia retornar e começar a vida embaixo de uma ponte; pelo menos não teria apenas mato ao meu redor.

— Estamos chegando? — resmungo, ainda meio sonolenta.

— Você dormiu 5 horas seguidas e ainda está com sono?! Quero ver como vai ser quando você precisar acordar cedo para realizar suas tarefas na fazenda — comenta Higor, meu querido e adorável irmão mais velho, com seu tom claríssimo de deboche e sarcasmo.

— Sim, querida, falta pouco... você vai gostar! — meu pai responde. Eu franzo a testa; ele só me chama de "querida" quando precisa me bajular, o que é raro, já que ele não se importa muito comigo.

Olho pela janela ao meu lado e tudo que vejo são montanhas e mato. Do outro lado? Mais mato. Começo a pensar que talvez estejam me levando para um lugar afastado para me abandonar. Eu realmente não ficaria surpresa se algo assim acontecesse, mas ainda tenho esperança de que meu irmão goste de mim pelo menos um pouco.
Quando fiz 4 anos, minha mãe faleceu em um acidente de trabalho. Ela escorregou próximo a uma das fendas do shopping e acabou caindo do terceiro andar. Foi socorrida com vida, mas não sobreviveu a todas as cirurgias pelas quais teve que passar. Desde então, vivi minha vida com meu pai, Marcos, e meu irmão Higor. Nenhum dos dois compensou a falta de minha mãe ou de uma figura feminina na minha vida. Meu pai acabou trabalhando o dobro e mal tinha tempo para mim ou para meu irmão. Mesmo morando na cidade, a maioria de nossa família era de Sanges, então não tivemos muito contato quando éramos mais novos.

Vivendo praticamente só com os dois a maior parte do tempo, quando fiz 12 anos, decidi que queria ser mais feminina, mais delicada, ou qualquer coisa que fosse um adjetivo para mulheres. Meu primeiro corte de cabelo? Igual ao do meu irmão. Minhas roupas? Sempre as mais bregas e largas. Cansei de ser alvo de piadas dos colegas da escola. Eu tinha que mudar. Então, resolvi que não os seguiria mais; teria minha própria vida. Agora, sou quem sempre quis ser. Não digo que sou bonita, sou extremamente bonita. Na verdade, nunca me chamei de feia e, sendo bem sincera, eu me acho espetacular.

Tenho 1,65 de altura, não sou tão baixa como a maioria das mulheres. Meus cabelos longos são como um véu em minhas costas, um véu loiro com ondas até a cintura. Meus olhos são claros como um céu azul e tenho sardas por todo o rosto. Meus traços são todos extremamente angelicais; algumas pessoas até me chamavam de deusa. Minha personalidade também não é ruim; sou apenas confiante o suficiente. Algumas pessoas chamam isso de narcisismo, mas não sei o que querem dizer. Eu sou perfeita, todos podem ver. Que mal há em saber disso?

Amor e Maldição - Um reconto inspirado na lenda do Corpo SecoOnde histórias criam vida. Descubra agora