Capítulo Vinte e Quatro

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Ainda ajoelhada no chão da floresta, eu mal conseguia respirar. As lágrimas queimavam meu rosto enquanto minha mente girava, tentando encaixar o impossível. O que eu tinha acabado de ver? Quem eram aquelas crianças... aquelas memórias?

Sentia como se parte de mim estivesse desmoronando, como se tudo aquilo fosse também parte das minhas próprias lembranças.

— O que foi tudo isso? — murmurei, entre soluços. — Quem eram eles? Por que eu... por que eu deveria saber sobre isso? Por que tudo parece tão... tão real? Aquela garota... a garota que você amou... sou eu? — As palavras saíram quase num surto, uma mistura de frustração e desespero.

A figura diante de mim, envolta em sombras, se aproximou, e o frio da sua presença se tornou quase insuportável, me arrepiando até os ossos. Seu rosto era uma sombra indistinta, mas suas mãos ossudas avançaram, segurando meu rosto e o erguendo com uma frieza assustadora, mas de uma suavidade inesperada, como se tentasse conter a dor que sabia que sua resposta traria.

— Dolce perdizione mia... (minha doce perdição) — sussurrou ele, o apelido escapando dos lábios como uma confissão velada, dita num tom carregado de saudade e de dor, tão profundo que fez meu coração estremecer.

Minhas lágrimas cessaram por um instante ao ouvir aquelas palavras. Algo nelas fazia eco dentro de mim, e o peso do apelido parecia soar verdadeiro, como se eu fosse dele e ele... meu.

— Eu não queria que você passasse por essa dor outra vez — continuou ele, a voz baixa e carregada de arrependimento. — Pensei que estivesse pronta, que o tempo finalmente fosse gentil conosco. Mas talvez... talvez eu tenha errado...

Sem esperar minha resposta, ele se inclinou, as mãos ossudas ainda segurando meu rosto com uma ternura perturbadora, e falou, a voz sombria reverberando através de eras de sofrimento.

— Helena... você sempre foi ela. — Sua voz era grave, um lamento antigo, uma cicatriz na eternidade. — E eu a perdi mais vezes do que sou capaz de lembrar. Em cada vida, você retorna... e em cada vida, o destino me condena a vê-la partir. Somos luz e escuridão, vida e maldição... destinados a nos amar eternamente, mesmo que isso nos leve à própria ruína.

Um frio intenso me invadiu, como se toda a luz ao nosso redor tivesse sido engolida, deixando apenas nós dois, presos em uma promessa insuportável e inevitável. Sua voz se tornou mais firme, gelada e decidida, um juramento sombrio gravado no silêncio.

— Mas desta vez, eu não a deixarei partir. Nem o tempo, nem as maldições... nada será forte o bastante para afastá-la de mim.

O ar ao meu redor parecia vibrar com o peso daquela promessa. Em meu peito, algo profundo e inevitável se agitava, e o vazio que me envolvia agora parecia um anseio por ele, uma urgência de ceder ao que ele representava. Era como se eu o conhecesse desde sempre, como se ele fosse a escuridão que sempre aguardou minha alma.

Eu me levantei, ainda tremendo com tudo o que ele havia me mostrado, mas agora tomada pela revolta. Ele esperava que eu aceitasse aquilo sem questionar, que simplesmente... fosse sua. Quem ele realmente acha que é?

— Você realmente acha que eu aceitaria isso? — minha voz saiu afiada, desafiando o silêncio entre nós. — Que eu aceitaria essa ideia de "nós", só porque você... me trouxe aqui? Que eu ficaria ao lado de alguém que nem ao menos tem um rosto para me mostrar? Alguém que me joga nessas memórias e espera que eu simplesmente acredite?

As sombras ao redor dele pareceram se agitar, quase em resposta ao que eu dizia, mas continuei, sem me importar.

— E mesmo que tudo isso fosse verdade — minha voz agora soava dura, implacável — o que te faz pensar que eu ainda sou como aquela garota?

Ele ficou em silêncio por um momento, e então sua voz veio baixa, como um sussurro que carregava eras de sentimentos intensos e contidos.

— Perdizione... (Perdição) — chamou ele, e a palavra soou como uma confissão, carregada de um carinho dolorido. — Você me conhece. Mesmo agora, você sabe... nós estamos perto, tão perto quanto sempre estivemos.

Eu senti o peso daquelas palavras reverberar dentro de mim, como se ele estivesse puxando algo escondido no fundo da minha alma.

— Você pode não se lembrar de tudo — continuou ele, com a doçura inabalável —, mas todas as vezes, todos os rostos, cada vida... não importa quem você se torne, ou quais sejam as mudanças... é sempre você. E eu sempre vou te amar.

Com um suspiro, as sombras ao seu redor se aprofundaram, tornando-se um manto escuro que parecia pulsar ao ritmo de sua voz.

— Por agora... deixe que essas palavras te envolvam — murmurou ele, em um tom tão suave que quase parecia um feitiço. — Há verdades que só o tempo pode desvendar, e, quando estiver pronta, tudo será revelado. Mas agora... — sua voz se tornou um sussurro, quase acariciando meu coração com um toque sombrio e irresistível — feche os olhos e deixe que eu guarde seus sonhos.

Era como se seu toque frio espalhasse por minha pele um torpor irresistível. Minhas pálpebras, pesadas, começaram a cair, o mundo ao meu redor se dissolvendo em um nevoeiro suave, etéreo. A última coisa que senti foi a leve pressão de suas mãos me segurando, como se ele estivesse me amparando enquanto eu me deixava levar. Conforme o vazio começava a se tornar um alívio doce e inevitável, ouvi sua voz ao longe, numa melodia suave, sussurrando as últimas palavras que chegavam como uma canção sombria:

— Adormeça agora, e nos véus da escuridão serei tua memória,tua perdição...

Amor e Maldição - Um reconto inspirado na lenda do Corpo SecoOnde histórias criam vida. Descubra agora