Capítulo Trinta e Um

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Os degraus sob meus pés pareciam anunciar minha chegada antes mesmo que eu pudesse falar. Descia devagar, cada passo ecoando no silêncio da sala, e, embora soubesse que todos estavam me olhando, só queria confirmar um olhar em especial.

Quando apareci no campo de visão deles, Caio foi o primeiro a reagir, como sempre.

— Até brilha. — Ele comentou casualmente, inclinando a cabeça para o lado, os olhos castanhos brilhando com aquele tom que eu conhecia bem: uma mistura de charme calculado e provocação.

Ele se mexeu no sofá, ajustando o cinto de fivela dourada que fazia parte de sua fantasia de pirata. A camisa branca estava solta, mas ele a usava de um jeito que parecia pensado para exibir exatamente o que ele queria. Seu cabelo loiro estava impecável, claro. Sempre estava.

— Achei que essa estrela era só minha. — Ele acrescentou fazendo biquinho e apontando para o canto do meu olho, onde o pequeno detalhe prateado da maquiagem brilhava.

— Não é de ninguém, Caio. — Retruquei, firme, mas sem elevar a voz.
— E não sei por que você insiste nisso.

Antes que ele pudesse soltar outra das suas, Higor entrou na sala, cortando o ar com sua voz firme.

— Você só pode estar brincando.

Revirei os olhos antes mesmo de olhar para ele. Lá estava meu irmão, vestido com a fantasia do ano passado, o caçador que tínhamos combinado de usar juntos. A camisa marrom e o colete de couro combinavam com as botas robustas, mas eu podia ver na expressão dele que estava prestes a sair um sermão.

Desci mais um degrau, cruzando os braços, e comentei:
— Ah, então foi isso que vocês foram fazer?— Tentei zombar para diminuir o conflito mas ele já havia se preparado.

Higor estreitou os olhos para mim, desconfiado, mas não respondeu de imediato.

— Devia ter imaginado que você iria de caçador. — Acrescentei, um sorriso provocador surgindo em meus lábios. Olhei para Maria, que estava logo atrás de mim na escada, e soltei:
— Se eu soubesse, não teria deixado ela ir de Chapeuzinho. Afinal, ela precisa encontrar uns lobos maus, né?

Maria riu, claramente se divertindo com a provocação, mas Higor não parecia tão animado.

— Engraçadinha. — Ele respondeu, cruzando os braços, mas não conseguiu esconder o olhar protetor que lançou para Maria.
— O problema não é ela, é você.

Parei no meio do degrau, erguendo uma sobrancelha, sentindo a indignação subir.

— Oxe, meu filho! Como assim? Eu usei essa mesma fantasia no ano passado e você não me deixou em paz a noite toda!

Higor revirou os olhos, claramente desconfortável, mas não hesitou na resposta:
— Porque na Maria fica... comportado. E em você... fica vulgar.

Arregalei os olhos de surpresa e por um momento, o ar ao meu redor pareceu congelar. Senti as palavras dele me atingirem como uma bofetada. Vulgar. Aquilo ecoava na minha mente de um jeito que não deveria.

— Vulgar? — Minha voz saiu mais baixa do que pretendia, quase trêmula, como se estivesse tentando processar o absurdo. A indignação rapidamente deu lugar a algo mais profundo, mais afiado. Uma parte de mim, aquela que nunca se deixava abalar, queria rebater, queria rir disso. Mas outra parte...

Outra parte estava ferida.

Pisquei rapidamente, como se pudesse afastar a sensação, mas ainda assim a voz dele parecia ecoar no fundo da minha mente, cutucando algo que eu não sabia como explicar.

— Você tem noção do que acabou de dizer? — Perguntei, tentando manter a postura, mesmo com o peito apertado e a respiração descompassada.

Higor cruzou os braços ainda mais apertado, mas desviou o olhar como quem sabia que tinha pisado feio.

— Eu só tô sendo sincero. — Resmungou, mas sua voz já soava mais defensiva.

Maria interveio antes que eu pudesse reagir, rindo enquanto descia um degrau e batia levemente no ombro dele.

— Higor, pelo amor de Deus, é Halloween. Relaxe.

Antes que eu pudesse retrucar, a voz calma e firme de Matteo preencheu o silêncio.

— Está perfeita.

O silêncio que seguiu parecia ainda mais pesado do que os argumentos de Higor. Olhei para Matteo, que estava encostado em uma das paredes. Ele não tinha se movido muito desde que eu desci, mas agora, seus olhos estavam fixos em mim, como se nada mais existisse.

Seu traje social preto era impecável, mas era o colete bordô justo ao corpo que o destacava. Os detalhes sutis dos bordados eram quase imperceptíveis à distância, mas o broche dourado brilhava contra o tecido, uma pequena estrela cadente com um cristal azul no centro.

Era elegante, mas nele parecia mais. Parecia parte dele.

— Ela sempre está. — Ele acrescentou, a voz tão baixa que mal soou como um sussurro.

Senti meu rosto esquentar antes mesmo de perceber. Algo em mim queria se esconder, mas outra parte — uma parte que eu não queria admitir que existia — queria ficar exatamente onde estava, sob aquele olhar.

Maria me deu uma cotovelada leve, sufocando uma risada. — Viu só? Alguém aqui tem bom gosto.

Higor bufou, cruzando os braços.
— Ah, claro. Fácil falar quando não é você que vai ter que ficar cuidando dos "demônios travessos" a noite toda.

Matteo nem piscou. Seus olhos permaneceram em mim quando ele respondeu.

— Talvez porque eu saiba que ela pode cuidar de si mesma.

Minha respiração ficou presa na garganta. Ele disse aquilo com tanta convicção que era impossível ignorar.

Higor pareceu irritado, mas, antes que ele pudesse falar mais alguma coisa, resolvi intervir.

— E você fique quieto. — Disse, alto o suficiente para encerrar a discussão. — Já falou mais do que devia, Higor.

Higor revirou os olhos e voltou para a cozinha, murmurando algo que decidi ignorar. Na verdade decidi que por hoje ele não existe mais para mim. Já Matteo, por outro lado, permaneceu onde estava, sem dizer mais nada, mas seus olhos... Já devo estar mais leve que uma pena.

Desci os últimos degraus devagar, desviando o olhar. Mas, quando pisei no chão e nossos olhares se encontraram novamente, foi como se o resto do mundo tivesse desaparecido.

Por que ele olha pra mim assim? Como se eu fosse algo sagrado, algo que ele não pudesse ter, mas ainda assim não pudesse deixar de querer? Por que eu me sinto tão nervosa com ele?

Enquanto seguíamos para a porta, senti a tensão crescer dentro de mim. Meu coração queria ceder, mas minha mente sabia a verdade: eu não podia.

Porque, por mais que meu coração o escolha, já fui prometida ao destino. E o destino... não pode ser mudado.

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⏰ Última atualização: 2 days ago ⏰

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Amor e Maldição - Um reconto inspirado na lenda do Corpo SecoOnde histórias criam vida. Descubra agora