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Quando aquela tortura finalmente termina, solto um suspiro, pigarreio e afasto minha mão do corpo de Cadu com a velocidade de quem tocou uma superfície escaldante. Ele fica prostrado à minha frente, com aquele sorriso torto de canto.

― Se quiser, pode ficar mais um pouco por aqui, marrenta ― ele gesticula com as duas mãos, fazendo uma referência ao próprio corpo.

Convencido. Demais.

Me aproximo da Bárbara com o olhar mais semicerrado que antes.

― Isso não vai ficar assim. ― cochicho em seu ouvido enquanto belisco sua cintura com vontade.

Ela solta um grito e me puxa de volta antes que eu consiga me afastar.

― Ah, Valen, corta essa. Todo mundo viu a química de vocês dois. A Lorena dançou dessa vez. Sério, o Cadu tá caidinho por você. Aliás, olha ali.

Babi inclina a cabeça na direção de Cadu. Ele está ajeitando o violão enquanto mantém os olhos fixos em mim.

― Ele não tira os olhos de você, Valen.

Ela não está mentindo. Eu já tinha reparado. Mas minha cabeça não consegue assimilar dois fatos tão absurdos: ele me beijou... e beijou a Lorena no mesmo dia. Eu sou incapaz de entender essa lógica. Sou incapaz de aceitar isso.

Volto a sentar em uma das cangas floridas trazidas pelas meninas, e ficamos todos reunidos em volta da fogueira. Cadu volta a tirar algumas notas do violão.

Armas químicas e poemas.

Ele me olha com as sobrancelhas arqueadas quando me vê cantar a letra inteira sem titubear. Afinal de contas, o que nos trouxe até aqui? Medo ou coragem? Ou nenhum dos dois?

Eu não sei o que ele quer dizer escolhendo justamente essa música. O que ele lembra muito bem quando entoa exatamente esse trecho da letra  e mira meus olhos? O que ele quer me dizer que lembra além do meu guarda-chuva cor-de-rosa e das pétalas que improvisou como curativo no meu fatídico primeiro tombo de bicicleta? O que está indizível, segredado, confuso no seu olhar intenso para mim?

Não consigo mais sustentar o olhar. Não consigo mais entender a lógica de qualquer sistema, incluindo aqui o sistema masculino inerente ao sistema capitalista. Sim, pior do que viver em um sistema que lucra com a desigualdade social é ter dentro dele os homens no comando. Não quero pagar para ver, para saber aonde leva essa loucura. Eu tenho apenas que... me afastar. É isso.

Antes de ele entoar a próxima canção, me levanto e caminho em direção ao mar. Carrego os calçados nas mãos, e manco bem menos do que antes. Definitivamente, não estou nada parecida com uma garota de Ipanema. E não consigo ser uma adolescente de quinze anos que tenta competir com outra garota – uma cuja perna, mesmo enfaixada, ainda seria a mais bonita de toda São Paulo. Ok, eu continuo insegura.

Continuo andando até as pedras na ponta da praia. Olho para trás por um instante para verificar se não estou me afastando demais do grupo. Vejo Cadu virar um shot com pressa, colocar suas mãos no bolso, tirar um cigarro e começar a correr na minha direção. Meu coração pulsa mais forte querendo sair pra fora do peito e dar um mergulho no mar. Mas procuro não me antecipar aos acontecimentos. Endireito a postura e continuo andando como se não soubesse que, em menos de um minuto, ele me alcançaria.

Trinta segundos de coração disparado depois, ouço meu apelido:
― Valen! Valen! Espera!

Não olho para trás.

― Pô, Valen... ― ele encosta sua mão no meu braço, e eu me viro para encará-lo. ― Até quando a gente vai ficar assim? - ele balança a cabeça e solta os braços ao lado do corpo.

Sempre fomos nósOnde histórias criam vida. Descubra agora