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Talvez eu não devesse ter sido tão resistente assim ao Cadu. Agora que ele já me deixou em casa depois de fumar quase um maço inteiro de cigarro, não consigo pensar em outra coisa a não ser no beijo que não aconteceu. Acho que parte da minha existência até aqui tem sido uma sucessão de "quases". Quases momentos felizes. Quase terminei o curso de inglês ano passado, quase me candidatei à presidência do grêmio estudantil da escola, quase aprendi a andar de skate, quase produzi um curta-metragem sobre todos os limites que a vida (ou seria eu mesma?) vem impondo para a completa realização de qualquer plano que eu tenha na cabeça. O quase beijo de ontem não é nada além de um resumo desta minha encarnação. Sim, eu precisarei de outra para terminar o curso de inglês e todos os outros rascunhos inacabados das "quases" composições que guardo na gaveta.

Ainda bem que a dona Clarice anda tão preocupada com as notas do meu irmão Caio que não questiona o motivo de eu estar com a cara de quem quase beijou o filho da dona Lia. Tenho certeza de que se minha mãe fizer qualquer pergunta sobre o trabalho de Geografia, eu vou acabar falando do clima equatorial que a respiração do Cadu produz sobre mim  ou da floresta densa e complexa que se tornou aquele sofá quando ficamos próximos o bastante para eu acreditar que aquele sorriso  gaiato seria apenas para mim e não para todas as outras garotas do colégio, da rua, da cidade.

Resolvo preparar um miojo e passo na frente da minha mãe pela sala. Enquanto coloco a água para ferver, escuto a dona Clarice falar comigo. Sinto medo de não sei exatamente o quê, um frio percorre minha espinha.

― Valen, deixei uma refeição pronta para você esquentar no microondas amanhã, ok? Terei de chegar mais tarde. Aliás, seu aniversário está próximo, já pensou no lugar em que pretende acampar com a sua turma?

Com todo esse rebuliço interno que virou minha vida de dois dias para cá, eu esqueci completamente do meu próprio aniversário. 

― Na verdade, hum, não, mãe... Ainda estou indecisa sobre montanha ou praia, e também não fiz a lista da galera que pretendo convidar. Então não. Não organizei nada. Vou tentar fazer isso com a Babi, tá? E obrigada por me lembrar de comemorar meu aniversário, mãe, e por financiá-lo, e por me amar tanto, e por não insistir naquele vestido de Cinderela que eu jamais usaria.

― Você ficaria linda naquele vestido, filha. É uma pena que você prefira se vestir com essas calças largas e moletom. Mas ok, apenas decida isso tudo o quanto antes para eu me organizar financeiramente. Estive na casa da Lia esses dias atrás e comentei sobre seu modo aventureiro de querer comemorar seus quinze anos. 

Ela dá um riso e revira os olhos, sei que ela queria que eu me comportasse como uma princesa da Disney, quase todas as mães criam filhas para serem princesas.

 ― Ah, e também aproveitei  para convidar o Cadu para acampar com vocês... 

Quase engasgo com o macarrão instantâneo que acabo de levar à boca.

― Você o quê, mãe?!

― Convidei o Cadu para acampar com vocês. Ah, Valen, ele é um menino confiável, cuida da própria mãe quando ela passa dos limites com a bebida. Então tem experiência suficiente para não permitir que você saia por aí experimentando bebidas alcoólicas só porque está ficando mais velha.

― Ahãm... - simplesmente não consigo falar nada, apenas assinto com a cabeça.

Sinto que estou ficando visivelmente ansiosa. Ainda não terminei sequer o miojo e meus pensamentos já me levaram para dentro de uma barraca de camping. O Cadu está organizando uma fogueira lá fora. Temos pronta uma roda feita com troncos de árvores para contarmos histórias de assombração, todo camping que se preze tem histórias de assombração. Eu fico com medo. Ele me abraça. Seus braços esquentam o meu corpo mais que a própria fogueira. Todos vão dormir. Ficamos apenas nós dois e as estrelas.

Sempre fomos nósOnde histórias criam vida. Descubra agora