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― Vou fazer o que já deveria ter feito! - Cadu sai batendo a porta enfurecido.

Provavelmente irá até o Júlio fazer o que todos os garotos fazem para resolver uma situação na qual se consideram injustiçados: encher a cara de outro garoto de porrada. Enquanto isso, fico ali sentada em frente à Lia, que intercala goles de pinga a falas que jamais esquecerei. São quase oito e meia da noite.

― Valen, minha querida, você sabe por que eu bebo? - Lia sorve um gole demorado de pinga.

Fico sem jeito de responder. Minha mãe várias vezes declarou que a bebedeira da Lia tinha relação com a situação de pobreza em que ela vivia e com uma grande decepção amorosa. Todo mundo do prédio estava acostumado a ouvir os escândalos que soavam do segundo andar quando o Sérgio ainda era seu marido.

― Não, Lia... mas eu sinto muito e compreendo. - respondo cabisbaixa, não a encaro.

Ela dá outra golada.

― Pois eu vou te contar agora. Eu era muito nova quando me apaixonei, acho que tinha assim a sua idade. - Lia abastece sua história com outra sorvida na garrafa ― Eu acreditava que o casamento era a razão da felicidade feminina, que ter filhos era uma dádiva, que o amor de duas pessoas duraria a eternidade. Então cometi um erro.

Lia faz uma pausa e olha fixamente para a sacada. Parece ver na escuridão da noite um reflexo de suas memórias. Fico apreensiva.

― Você se casou...

― Pior. Eu amei intensamente mais a um homem do que a mim mesma. Dei a ele parte dos meus dias. E, sem perceber, subtraí vários anos da minha vida que poderiam ter sido dedicados aos meus dons artísticos. Não me arrependo de casar. - Lia faz uma pausa novamente para sorver outro gole da garrafa ― Casar me deu a experiência necessária para nunca mais querer me casar!

Ambas desatamos uma gargalhada e depois voltamos a mirar o céu sem estrelas do bairro da Consolação. É uma ironia que a Lia more em um bairro com esse nome, ele nunca foi capaz de lhe dar nenhum alívio. Ela prossegue:

― O que quero lhe dizer, querida Valen... - sua voz cambaleia ― é que nós, as mulheres, perdemos muitos anos de nossa vida sonhando com o amor. Sua mãe é a única moradora desse prédio que entende isso.

― Sim, meu pai foi um canalha... - assinto.

― Mesmo se tivesse sido um marido perfeito. - as palavras parecem dançar enquanto Lia as pronuncia ― Os anos dedicados a eles, mesmo quando perfeitos, podem nos roubar profissões, estudos, viagens, amizades. E ainda pode gerar essa coisa aí dentro de você.

― Que coisa dentro de mim? - tenho a expressão interrogativa.

― Essa coisa cha... cha... cha...chamada - desconfio que ela não conseguirá terminar a frase, seguro seu braço porque ela parece cambalear para um lado da sala ― chamada "competição com outra mulher". - seu sinal de aspas é feito apenas com o dedo indicador ― Qual é mesmo o nome da rapariga que meu filho beijou?

― Lorena.

Lia se desvencilhar do meu braço e parece caminhar para uma vitrola antiga que possui acima de uma mesinha de canto feita de acácias. Apesar de bêbada, seu olhar é amável.

― A Lorena não é sua inimiga, Valen.

― Eu sei, Lia... A professora Lúcia sempre faz a gente pensar sobre a história das mulheres.

― Sei que você se sente triste, porque meu filho beijou essa garota. Mas eu não me sinto triste porque o Sérgio beijou outra mulher.

― Ele também traiu você? - demonstro minha indignação por saber que aconteceu com a Lia o que aconteceu com a minha mãe. - E você não se sente triste por isso?

― Não - mesmo cambaleando, seu olhar é implacável ― Eu me sinto triste por ser pobre. E sou pobre porque dediquei meu tempo ao casamento. Se tivesse me casado, mas dedicados os dias que lavei, passei, limpei, cozinhei, a escrever como Raul... - Lia liga a vitrola.

Era compositora. Amadora. De uma pequena gaveta da mesinha de acácias, ela tira um bloco de papéis onde estão registradas letras e mais letras de canções que jamais seriam conhecidas até mesmo pelo seu filho. Entrega a mim enquanto entoa "Eu sou a luz das estrelas, eu sou a cor do luar...". Lia era fã de Raul Seixas. Jogava seus cabelos ralos e pretos de um lado para o outro enquanto fingia beber o líquido que já não existia na garrafa. Pego o compilado em uma das mãos e começo a folheá-lo.

― Lia, você é muito talentosa! Por que esconde tudo isso aqui? - pergunto após ler algumas das suas composições.

― Ninguém daria um vintém sequer a uma velha bêbada do segundo andar! - ela gargalha.

Não sei o que responder. Lia estava com cinquenta e cinco anos, mas suas expressões revelavam vinte anos a mais. Sua pele enrugara mais cedo no cuidado de não morrer de fome. Aceitava qualquer trabalho além de costureira. Limpava casa e cuidava de crianças. Trabalho registrado não procurava mais, já estava cansada de ser mandada embora por conta da bebida. Queria beber em paz todos os dias que não vivera seu sonho de compositora.

Lia me fazia pensar que seu erro fora colocar o sonho do casamento à frente de outros desejos seus na lista de sonhos. Acho que todas as pessoas têm uma lista de sonhos, mesmo que não esteja elaborada em um papel. Lia havia errado na ordem da lista. Seu ex-marido contribuia bem pouco com a pensão. E ela havia contribuído muito para que ele tivesse dado certo profissionalmente.

― Lia, eu preciso ir atrás do Cadu. Tenho medo do que ele possa fazer com o Júlio. - falo enquanto a ajudo a sentar no sofá, pois ela insiste em dar passos desgovernados pela sala.

Ela se senta.

― Vá... vou ficar aqui com o amor da minha vida. Raul Seixas! Raul Seixas! Raul Seixas! - ela coloca a mão no peito como quem faz uma declaração de amor e eu me dirijo para a porta ― E você... Ei, Valen! Espere!

Volto o olhar para trás, aguardando o motivo do seu chamado.

― Você não deve perdoar meu filho nunca! Nunca! Nuncaaaa! - Lia grita e gargalha ao mesmo tempo.

Cruzo o portão de saída e caminho em direção à casa do Júlio. Ele mora a dois quarteirões do nosso prédio e, pelo horário, é possível que esteja jogado na calçada com os lábios sujos de sangue. Dou passos largos. Durante o trajeto sinto pena da Lia. Minha mente me traz a lembrança da minha primeira festa de aniversário naquele condomínio. Quando fiz seis anos, Lia, com o parco dinheiro que tinha feito com algumas costuras, comprou uma toalha e bordou nela a personagem Emília para mim. Eu tinha aquela toalha até hoje e, na escola, toda vez que as professoras dos anos iniciais liam algumas história do Sítio do Picapau Amarelo, eu sempre levantava a mão para falar que tinha uma toalha da boneca falante. Era um orgulho para mim dizer que eu conhecia aquela personagem antes de ler os livros de Lobato.

Ah, Lia! Como eu queria não precisar perdoar seu filho!

***
Capítulo em homenagem a minha vizinha Lia (in memorian)

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Precisamos amadurecer nossa visão de amor. Cadu aparece de novo.

Fiquem com Raulzito!

Sempre fomos nósOnde histórias criam vida. Descubra agora