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Quando Cadu me conduz até o seu apartamento, ainda estou um pouco alta. Mas já é possível entender bem que a sua preocupação comigo não é apenas um plano para poupar dona Clarice. Ainda na cobertura do prédio, ele chega a me olhar com mais profundidade do que já tivera feito antes. Dá uma piscada e um toque na minha mão quase simultâneos enquanto entoa o trecho "entre a minha boca e a tua/ há tanto tempo, há tantos planos/ mas eu nunca sei pra onde vamos".

― Eu também não faço ideia. Para onde vamos? - sinto meu rosto queimar e enrubescer feito molho de tomate sobre um prato de macarronada.

― Para casa. Quero dizer, para o meu apartamento até você ficar com cara de quem terminou de fazer um trabalho de Geografia.

― Mas a Lia vai acabar entregando nosso plano pra minha mãe, e eu vou ter de dizer que o tema do trabalho era "São Paulo visto de cima por jovens embriagados". Sua mãe conhece a minha, Cadu, lembra? Ela vai acabar soltando e...

― Minha mãe não está em casa, Valen. Relaxa.

― E você acha que eu vou ficar sozinha com você no seu apartamento? Assim? Bêbada? - franzo o cenho.

― Ah, Valen, pô, sai dessa! Não sou nenhum canalha que vai abusar da situação. Juro que em uma hora você estará ótima para dar o fora se quiser, mar-ren-ta. - ele soletra lentamente o apelido que colocou em mim bem perto dos meus lábios.

O problema é exatamente esse. Eu não quero estar ótima para dar o fora. Então enrubesço mais uma vez e olho para baixo.

Ele nota e resolve se levantar, enquanto tenta me convencer dizendo que precisamos ficar em um lugar menos propício a colocarem nossa reputação em risco. Afinal, estamos levemente bêbados cantando músicas dos anos 80 sobre a cidade inteira. E vizinhos, bem, vizinhos são vizinhos. No dia seguinte eles vão dizer que encontraram uma camisinha lá e não apenas dois adolescentes fãs de rock new wave.

Lá estamos nós então, adentrando a sala ladeada de quadros de Raul Seixas em paredes verdes-oliva. Dois gatos sobre o sofá, uns discos de vinil jogados numa poltrona remendada de tecidos coloridos e cinzeiros sobre todos os lugares onde é possível deixar um cinzeiro. Lia é fã de Raul tanto quanto de bebida e cigarro. Seu filho tinha herdado apenas parte dos seus vícios. Era um músico, mas bebia e fumava bem menos que sua mãe.

― Vem, marrenta. Quero te mostrar outra coisa. - ele segura novamente minha mão e me leva para uma estreita varanda. - Olha, sei que não é a mesma paisagem que estávamos vendo agora pouco, mas é possível ver aquilo...

Estreito os olhos para ver melhor o que ele queria dizer com "aquilo". E vejo.

― É o seu Geraldo...

― Exatamente.

― Com a dona Lourdes!

― Exatamente.

― Meu Deus, Cadu!

― Faz alguns anos que a minha mãe diz que seu Geraldo só é conservador da boca pra fora. Olha aí! É a favor da pátria e da família, mas trai a mulher todas as vezes que o sol incendeia o céu de vermelho e seu corpo arde em brasa! Sua bandeira nunca será vermelha, apenas o que esconde debaixo das calças. 

Soltamos uma gargalhada síncrona.

Tenho que admitir que há muitas características que admiro no Cadu. Uma delas é, sem dúvidas, suas opções políticas. Ele é um cara que sabe porque a sua mãe é alcoólatra do mesmo modo que também sabe que a Lia pode ser tudo, menos uma hipócrita.

Enquanto observamos seu Geraldo preocupado com a possibilidade de sua mulher chegar mais cedo hoje, percebo que meu corpo está muito próximo do Cadu. A varanda de seu apartamento é muito exígua, então não há como não ser envolvida pelo seu corpo. Estou apoiada no muro, enquanto Cadu está atrás de mim, sem de fato encostar no meu corpo, apesar de, vez ou outra, ser possível sentir sua mão atravessar o meu braço ao apontar algo que ele quer que eu veja. Quando fala, consigo ouvir a sua voz rouca bem próxima ao meu ouvido, e toda a minha pele sente o aroma do seu hálito.

Quando o espetáculo acaba, Cadu e eu nos jogamos no sofá em meio a muitas risadas até, enfim, silenciarmos por um tempo, sem nenhum outro assunto a não ser a minha volta para casa.

― Você já inventou um tema para seu trabalho de Geografia, marrenta?

― Acabei de inventar agora na sua varanda.

― E qual é?

― "A vida privada do cidadão de bem do século XXI".

― Ah, mas aí não seria um trabalho de Geografia. E sim de História.

― Não se eu citar as circunstâncias de tempo e espaço ideais para a pesquisa: o por do sol e a sacada de um determinado apartamento do segundo andar.

― Boooa! - ele sorri em êxtase ao mesmo tempo em que aproxima seu rosto do meu. - Não tinha mesmo como aqueles babacas derrubarem você, marrenta. Você é rápida no gatilho. E... está atirando em mim.

Seus dedos tocam a minha boca. Sinto-me flutuar sobre a sua respiração que agora está um pouco ávida e perto demais da minha. Não sei se estou no planeta mais. Ele intenciona me tirar geograficamente do eixo.

― Você é incrível, marrenta. E eu acho que já te disse isso hoje, não? - ele aproxima mais um pouco os seus lábios da minha boca.

― Sim, você já disse. - eu o puxo pela gola da camisa, nossos lábios quase se tocam, depois o empurro para o lado oposto do sofá. - E disse também que não ousaria se aproveitar da situação.

Claro que eu estou torcendo para ele insistir em se aproximar de mim assim de novo, mas também considero a circunstância. Estamos sozinhos no seu apartamento e ainda me sinto levemente fora daquilo que considero sóbria. Além de que a dona Clarice me ensinou, depois de muitas decepções amorosas, a colocar à prova as palavras de todo ser humano do sexo masculino. Estou apenas colocando em prática o conselho das mulheres que vieram antes.

― Oook... - ele abre os braços e as mãos - Vou precisar ficar em outro ambiente da casa, então. Porque no mesmo cômodo que você, marrenta, eu vou acabar me tornando um canalha. Um canalha feliz para caramba! - ele segue para a varanda novamente e acende um cigarro.

Então dedilha no violão:

"O que você não pode,
eu não vou te pedir
O que você não quer,
eu não quero insistir"

***

Eu amo escrever essa história!

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